O Belchior que a crítica vulgar não viu
Canções do compositor cearense debateram, desde os anos 1970, a alienação, as
relações mercantis e a própria indústria cultural. Mas alguns procuraram
enquadrá-lo como apenas um rapaz romântico
Por Alberto Sartorelli
Que tal a civilização
Cristã e ocidental…
Deploro essa herança na língua
Que me deram eles, afinal.
- BELCHIOR, “Quinhentos anos de quê?”
(Bahiuno, 1993)
A imagem de Belchior vendida pela indústria cultural é a do
artista brega, de voz fanha e bigodão – uma figura! Poucos prestam atenção nas
letras. A forma simples de suas canções possibilitou sua assimilação pela
indústria fonográfica, que criou-lhe uma imagem caricata e reproduziu suas
músicas em massa, entre shows, premiações e programas de auditório, fazendo
tábula rasa de seu conteúdo crítico. Belchior foi reduzido a um mero cantor
romântico.
Em estética, o artista engajado politicamente deve escolher
entre dois caminhos: o da forma artística de difícil assimilação – e
remuneração! – para o público e para a indústria cultural; ou o da forma mais
simples, de fácil assimilação do público e do show business. Ambas as opções
estão fadadas ao silêncio político: uma não apela, a outra tem seu apelo
anulado pela caricaturização. No fim, a indústria cultural impede que qualquer
artista seja levado muito a sério, por seu ostracismo ou por sua redução a uma
imagem vendável.
A especificidade de Belchior é a sua consciência perante
esse processo todo. “Aluguei minha canção / pra pagar meu aluguel / e uma dona
que me disse / que o dinheiro é um deus cruel / […] hoje eu não toco por música
/ hoje eu toco por dinheiro / na emoção democrática / de quem canta no chuveiro
/ faço arte pela arte / sem cansar minha beleza / assim quando eu vejo porcos /
lanço logo as minhas pérolas” (TOCANDO POR MÚSICA, Melodrama, 1987).
Belchior demonstra uma compreensão total do processo de
nivelamento – por baixo – da cultura por parte da indústria cultural,
dificultando demasiado a ocorrência de composições com alto grau de
complexidade – os artistas que se propõem a tal correm sempre o risco da
miséria material e do esquecimento. Os próprios arranjos dos discos de Belchior
são bem simples, com o teclado tendendo ao “engraçado”. Não é da mesma maneira
em relação às letras, sempre de uma profundidade abissal e crítica ácida.
Belchior, antes de músico no sentido geral, é um compositor
de canções. Cada autor encontra uma forma para se expressar: o ensaio
filosófico, a pintura não-figurativa, a ópera, a canção. A canção foi a forma
adequada que Belchior encontrou para transpassar seus pensamentos. É preciso
ter em mente, ao pensarmos a obra de Belchior, um autor de vasta erudição, de
poesia refinadíssima, conhecedor das línguas latinas e da literatura clássica,
e um artista engajado politicamente de maneira radicalíssima. A partir da forma
canção, Belchior oferece uma visão do Brasil e do mundo que pouquíssimos
filósofos nascidos em nossas terras puderam vislumbrar. Como diz Nietzsche, o
homem verdadeiramente de seu tempo sempre está à frente de seu tempo. É o caso
de Belchior.
Uma das críticas mais ferrenhas do cancionista sobralino é
contra a arte alegre, moda da época nos anos 1960-70. O filósofo Theodor
Adorno, em sua
Teoria Estética (1969) diz que a arte se utiliza de elementos
da vida enquanto seus materiais; se a vida social é cindida pela divisão do
trabalho, que separa o homem de sua produção e da natureza, e impede a
felicidade enquanto reconhecimento recíproco entre sujeito e objeto, a arte que
imita essa vida deve ser triste, como a própria vida. A arte alegre seria,
então, ideológica, uma falsa verdade. A Bahia alegríssima de Caetano Veloso dos
anos 1970 (a triste é de Gregório de Matos) não passa de logro, ilusão. “Veloso
/ o sol não é tao brilhante pra que vem / do norte / e vai viver na rua”
(FOTOGRAFIA 3X4, Alucinação, 1976). Surpreendente o jogo de ambiguidade:
“veloso” pode ser tanto um adjetivo do Sol, velando pelo migrante e suas
dificuldades na metrópole, ou assumir outro sentido completamente oposto,
identificado com o próprio Caetano enquanto imperativo moral – “Veloso
(Caetano), veja!, para quem sofre, o sol não é tão brilhante quanto dizes”. Ou
então esta outra: “Mas trago de cabeça uma canção do rádio / em que um antigo
compositor baiano me dizia / tudo é divino / tudo é maravilhoso / […] mas sei
que nada é divino / nada, nada é maravilhoso / nada, nada é sagrado / nada,
nada é misterioso, não” (APENAS UM RAPAZ LATINO-AMERICANO, Alucinação, 1976).
Chamado de “antigo”, pois já havia deixado de ser vanguarda
e caído no pop, encontramos mais uma crítica a Caetano e sua composição “Divino
Maravilhoso” (1968), em parceria com Gilberto Gil e que foi imortalizada na voz
de Gal Costa. Vale notar, sem dúvida, que a crítica de Belchior a Caetano
provém de alguma admiração: em entrevista ao Pasquim em 1982, Belchior diz que
Caetano Veloso é o melhor letrista da MPB, “o autor da modernidade musical no
Brasil”. Todavia, é com enorme verve materialista que ele fortemente rebate a
letra de Caetano – “nada é divino, maravilhoso, sagrado, misterioso!”
O materialismo é um dos fundamentos da música de Belchior.
Seus grandes inimigos são os escapistas, os fugidios, aqueles que diante de
crenças metafísicas falam de uma vida reconciliada, feliz. Musicalmente
representada na Tropicália, essa ideia era disseminada pelos hippies, com a
cabeça feita por alucinógenos e um mix de espiritualidade. A resposta do
materialista é ácida [sic]. “Eu não estou interessado em nenhuma teoria / em
nenhuma fantasia / nem no algo mais / nem em tinta pro meu rosto / oba oba, ou
melodia / para acompanhar bocejos / sonhos matinais / eu não estou interessado
em nenhuma teoria / nem nessas coisas do oriente / romances astrais / a minha
alucinação é suportar o dia-a-dia / e meu delírio é a experiência / com coisas
reais” (ALUCINAÇÃO, Alucinação, 1976). É como se Belchior dissesse que não é
por estar num registro de experiência desconhecido que essa experiência é
necessariamente divina; especular metafisicamente sobre isso não passa de
teoria vazia. E que o importante não é o plano espiritual, mas este aqui, o da
miséria e do sofrimento, a realidade empírica e social.
Aos 29 anos em 1976, quando do lançamento do álbum
Alucinação, Belchior teve o tempo, a maturidade e o olhar aguçado para ver a
dissolução do sonho pacifista de liberdade. Os libertários de outrora logo se
tornaram os burgueses. “Já faz tempo / eu vi você na rua / cabelo ao vento /
gente jovem reunida / na parede da memória / esta lembrança é o quadro que dói
mais / minha dor é perceber / que apesar de termos feito / tudo, tudo o que fizemos
/ ainda somos os mesmos e vivemos / como os nossos pais / […] e hoje eu sei /
que quem me deu a ideia / de uma nova consciência e juventude / está em casa
guardado por Deus / contando seus metais” (COMO OS NOSSOS PAIS, Alucinação,
1976). É curioso notar que foi exatamente “Como os nossos pais”, na magnífica
voz de Elis Regina, a canção que colocou Belchior de fato no mercado
fonográfico.
O radicalismo político de Belchior tem seu principal
fundamento na crítica do dinheiro em si e do trabalho alienado, uma crítica
mais profunda do que a mera crítica do capitalismo. O dinheiro é tratado
enquanto fetiche e abstração, mas também enquanto necessidade material e fonte
da corrupção moral. “Tudo poderia ter mudado, sim / pelo trabalho que fizemos –
tu e eu / mas o dinheiro é cruel / e um vento forte levou os amigos / para
longe das conversas / dos cafés e dos abrigos / e nossa esperança de jovens /
não aconteceu” (NÃO LEVE FLORES, Alucinação, 1976). E é o trabalho aquilo
separa o homem da natureza, exterior e interior, desumanizando-o. “E no
escritório em que eu trabalho e fico rico / quanto mais eu multiplico / diminui
o meu amor” (PARALELAS, Coração Selvagem, 1977). Por isso, o aspecto político
da obra de Belchior ultrapassa a defesa do socialismo centralista ou qualquer
outro sistema que envolva a burocracia. O problema é um problema fundamental,
primeiro, filosófico: a civilização. “Aqui sem sonhos maus, não há anhanguá /
nem cruz nem dor / e o índio ia indo, inocente e nu / sem rei, sem lei, sem
mais, ao som do sol / e do uirapuru” (NUM PAÍS FELIZ, Bahiuno, 1993). Profundo
como um antropólogo anarquista, um Pierre Clastres da canção, a crítica mira o
fundamento da coisa: a racionalidade ordenadora, dominadora, instrumental, como
fora notado por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento (1946).
Belchior faz as denúncias fundamentais; sua arte é
hegemonicamente negativa. Todavia, há um resquício de esperança nessa visão do
Apocalipse, mesmo que a esperança fale sobre o que não deve ser. Nada absurdo
para o cancionista sobralino, pois para ele a sociedade é ruim por excesso, não
por falta. “Não quero regra nem nada / tudo tá como o diabo gosta, tá / já
tenho este peso / que me fere as costas / e não vou, eu mesmo / atar minha mão
/ o que transforma o velho no novo / bendito fruto do povo será / e a única
forma que pode ser norma / é nenhuma regra ter / é nunca fazer / nada que o
mestre mandar / sempre desobedecer / nunca reverenciar.” (COMO O DIABO GOSTA,
Alucinação, 1976). “Como o diabo gosta” deveria ter sido um hino da liberdade;
passou despercebida, sem ninguém contestar a “Pra não dizer que não falei das
flores” (Geraldo Vandré, 1968) o posto de canção de protesto.
Para Belchior, as palavras são um instrumento de luta
política, do despertar da consciência contra a opressão e seus mecanismos
ideológicos. “Se você vier me perguntar por onde andei / no tempo em que você
sonhava / de olhos abertos, lhe direi / amigo, eu me desesperava / […] e eu
quero é que esse canto torto feito faca / corte a carne de vocês” (A PALO SECO,
Alucinação, 1976). Para tal intento, sua canção deve ter um quê de dissonância
para com o sistema estabelecido, e em vez de cantar as “grandezas do Brasil”,
tem de denunciar os horrores de uma sociedade civil falida. “Não me peça que eu
lhe faça uma canção como se deve / correta, branca, suave / muito limpa, muito
leve / sons, palavras, são navalhas / e eu não posso cantar como convém / sem
querer ferir ninguém / mas não se preocupe meu amigo / com os horrores que eu
lhe digo / isso é somente uma canção / a vida realmente é diferente / quer
dizer / a vida é muito pior” (APENAS UM RAPAZ LATINO-AMERICANO, Alucinação,
1976). Se a arte é a mímese da vida, toda arte, por mais verdadeira que seja
enquanto parte, não dá conta do todo. A realidade é pior do que a tristeza que
a arte transpassa, e pior do que o pesadelo em sonho. É essa realidade que
importa mudar.
Um mecanismo utilizado nas letras e nas melodias de Belchior
é o da aproximação perante o ouvinte. Cearense, migrante, que na cidade grande
sofreu, tocou em puteiros, foi explorado para “fazer a vida”. “Pra quem não tem
pra onde ir / a noite nunca tem fim / o meu canto tinha um dono e esse dono do
meu canto / pra me explorar, me queria sempre bêbado de gim” (TER OU NÃO TER,
Todos os sentidos, 1978). É assim, por meio de sua experiência de vida trash,
que Belchior realiza o approche para com o ouvinte. Ritmo simples e letra aguda,
essa foi a aposta do cancionista para a politização da massa. “A minha história
é talvez / é talvez igual a tua / jovem que desceu do norte / que no sul viveu
na rua / que ficou desnorteado / como é comum no seu tempo / que ficou
desapontado / como é comum no seu tempo / que ficou apaixonado e violento como
você / eu sou como você que me ouve agora” (FOTOGRAFIA 3X4, Alucinação, 1976).
Ao dizer “eu sou como você”, Belchior almeja arrebatar o outro como identidade,
e trazer à tona a revolta contra a opressão; seu público – alvo, escolhido a
dedo, não é o intelectual burguês letrado, mas o pobre que vai ao boteco depois
da jornada de trabalho; ele o reconhece como indivíduo ativo a ser despertado:
o sujeito revolucionário. Mas é claro que a indústria cultural fez de tudo para
anular esse conteúdo: em plena ditadura militar, transformaram Belchior numa
personagem caricata, num astro romântico, o galã de “Todo sujo de batom”
(Coração Selvagem, 1977).
Belchior sabe, desde muito tempo, que “Eles venceram / e o
sinal está fechado pra nós / que somos jovens” (COMO OS NOSSOS PAIS,
Alucinação, 1976). Mesmo assim, não foi em vão seu esforço: além de todas as
canções citadas até agora, ainda há muitas outras de conteúdo crítico ferrenho,
como por exemplo “Pequeno perfil de um cidadão comum” (Era uma vez um homem e
seu tempo, 1979), uma epopeia sem o elemento épico, que fala de como é vã a
vida do sujeito raso, de gosto pouco refinado, cuja finalidade é voltada ao
trabalho; “Arte Final” (Bahiuno, 1993), grande canção sobre tudo aquilo que
deveria ter acontecido e não aconteceu; ou “Meu cordial brasileiro” (Bahiuno,
1993), que identifica a tese do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Hollanda
(Raízes do Brasil, 1936), o elemento diferenciador do brasileiro, com o aspecto
consentido do nosso povo perante a política e o trabalho. Belchior teve sua
poesia impregnada pela frustração de não ter podido colocar em prática o
projeto por um mundo melhor, e sua música é mais verdadeira e mais
revolucionária por isso: não promete a felicidade, mas escancara a
impossibilidade dela no estado de coisas vigente.
No fim, em meio a essa cena sombria, nos tempos dele e no
nosso tempo de agora, ainda há alguma esperança. Para Belchior, mais importante
do que a filosofia ou a arte é a vida. “Primeiro o meu viver / segundo este vil
cantar de amigo” (AMOR DE PERDIÇÃO, Elogio da Loucura, 1988). Sua filosofia é
oposta à de Caetano: se para o compositor baiano, quem “mora na filosofia” está
separado dos sentimentos humanos, a filosofia de Belchior provém da
experiência; é pensamento vivo. “Deixando a profundidade de lado / eu quero é
ficar colado à pele dela noite e dia / fazendo tudo de novo / e dizendo sim à
paixão / morando na filosofia” (DIVINA COMÉDIA HUMANA, Todos os sentidos,
1978).
Marcado no cancioneiro latino-americano como uma de suas
grandes vozes, Belchior foi um mestre da poesia. Foi assimilado pela indústria
cultural, de fato, como Mercedes Sosa ou Che Guevara. Ele se jogou na
contradição da música popular, assim como qualquer um se joga nas contradições
da lógica do trabalho. Assimilado, mas não rendido. “Marginal bem sucedido e
amante da anarquia / eu não sou renegado sem causa” (LAMENTO DE UM MARGINAL BEM
SUCEDIDO, Bahiuno, 1993). Não é por ter sido reproduzido e veiculado pela indústria
cultural que Belchior perdeu totalmente a sua virulência: ela se mantém viva em
ouvintes atentos que, como nós, encontram nele uma manifestação da consciência
de seu tempo, e mais: a esperança de um mundo melhor, inteiramente outro. Por
agora, o importante é viver. “Bebi, conversei com os amigos ao redor de minha
mesa / e não deixei meu cigarro se apagar pela tristeza / sempre é dia de
ironia no meu coração” (NÃO LEVE FLORES, Alucinação, 1976). Belchior, como
Nietzsche, diz sim à vida, apesar de tudo, e talvez por isso tenha caído fora
dessa loucura midiática que é a vida de um artista famoso sempre sob os
holofotes.
Em relação às dúvidas acerca de seu paradeiro, que me
perdoem os escandalizados, mas a letra já estava dada há muito tempo. “Saia do
meu caminho / eu prefiro andar sozinho / deixem que eu decido a minha vida”
(COMENTÁRIO A RESPEITO DE JOHN, Era uma vez um homem e seu tempo, 1979).
Alberto Sartorelli é estudante de filosofia e escritor.
FONTE. SITE OUTRASPALAVRAS
Post a Comment