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A saúde nas mãos do capital estrangeiro

Como uma lei inconstitucional ameaça o SUS e permite que grandes conglomerados globais mercantilizem e segreguem o atendimento médico no país


Por Leonardo Gomes Nogueira* | Imagem: Diego Rivera, A História da Medicina, detalhe (1953)

No final da 54ª legislatura, às vésperas do início do recesso parlamentar de fim de ano, escondida em meio a dezenas de artigos tratando dos mais variados assuntos, o Congresso Nacional aprovou, em 10 de dezembro de 2014, regra que amplia, em muito, o campo de atuação do capital estrangeiro na saúde do Brasil.

A presidente Dilma Rousseff, ignorando o pedido de diversas entidades e organizações que trabalham em defesa da saúde pública, sancionaria a lei em 19 de janeiro de 2015.

Antes restrito aos planos e seguros, agora o capital de fora pode, de forma direta ou indireta, atuar na assistência à saúde. O que inclui hospitais (inclusive filantrópicos), clínicas e laboratórios. É o que diz, em resumo, o Artigo 142 da Lei 13.097 (que altera trechos da 8.080, de 19 de setembro de 1990, que definiu o âmago Sistema Único de Saúde — SUS).

A lei sancionada pela presidente agora afastada tem 169 artigos. Além do tamanho, também chama atenção pelo fato de que os seus artigos têm pouco ou nenhuma relação entre si. Ela trata de coisas tão díspares como a “Desoneração Tributária de Partes Utilizadas em Aerogeradores” e o “Descarte das Matrizes Físicas no Processo Administrativo Eletrônico”.

O que alguns que acompanharam o assunto, como a professora Ligia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), classificaram como “X Tudo” (o sanduíche que reúne ingredientes em grande quantidade e tão diferentes entre si quanto os artigos inseridos na lei do capital estrangeiro).

“Não foi uma surpresa”, comentou Ligia. “Era um pleito das entidades do meio empresarial. Não teve oposição. Não há oposição a essa lei”, avaliou a professora da UFRJ, citando o deputado federal Ivan Valente como uma das poucas vozes no parlamento que se opôs ao tema.

“É triste porque é uma mudança constitucional. Como uma mudança constitucional ocorre sem um grande debate na sociedade?”, indagou.

O subprocurador-geral da República, Oswaldo José Barbosa Silva, classificou o processo como “vergonhoso”. “Essa lei foi uma colcha de retalhos”, criticou, em 25 de junho de 2015, durante debate promovido pela Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste).

“Essa lei é manifestamente inconstitucional”, disse Silva. “Nossa preocupação como membros do ministério público não é discutir a mão invisível do mercado de um lado ou as virtudes do Estado no controle da sociedade do outro. Nós somos operadores jurídicos. E nosso dever é defender a Constituição”, ressaltou.

Oswaldo José Barbosa Silva, da Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde (Ampasa), lembrou que o artigo 199 da Constituição brasileira veda a participação (direta ou indireta) de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde e acrescenta: “salvo nos casos previstos em lei.”

Ele acredita que os constituintes redigiram o texto dessa maneira, prevendo algum tipo de exceção ao veto para casos excepcionais que obrigassem o país a aceitar a entrada do capital de fora. “Então, você tem uma regra e uma exceção. Só que essa lei transformou exceção em regra”, avaliou.

“Na prática designa-se, por exceção, a possibilidade do capital estrangeiro entrar em toda e qualquer ação e serviço de saúde. Agora, a legislação brasileira sobre saúde traz duas políticas opostas na mesma norma”, escreveu o professor Mário Scheffer em artigo.

Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a legalidade dessa lei aguarda julgamento, desde fevereiro de 2015, no Supremo Tribunal Federal (STF). A liminar, quando (e se) houver um julgamento da questão, será apreciada pela ministra Rosa Weber.

O supermercado da saúde

No mesmo debate promovido pela Associação Brasileira de Defesa do Consumidor, o na época presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), Bráulio Luna Filho, avaliou que o ingresso do capital estrangeiro pouco ou nada contribuirá para o avanço da saúde ofertada ao brasileiro ou mesmo para a melhoria das condições salariais e de trabalho entre os médicos.

“Em dez anos, nós vamos ter não mais 300 mil médicos no país, vamos ter quase 500 mil. E os médicos não vão ter alternativas”, disse Luna Filho, lembrando a tendência de que grandes grupos econômicos estrangeiros adquiram empresas brasileiras e criem um setor fortemente oligopolizado, permitindo, dessa forma, que o poder de negociação ou mesmo de imposição desses grupos cresça à medida que o dos trabalhadores diminui. Isto somado ao fato de que, em poucos anos, haverá uma maior oferta de médicos no mercado, tornando quase certo que a famosa lei da oferta e da procura favoreça os “senhores da humanidade” [1].

Relações trabalhistas

A entrada de investidores estrangeiros deve também provocar grande impacto no mercado de trabalho, nas relações entre médicos e empresas de saúde. “O capital estrangeiro é mais agressivo no que diz respeito à obtenção do lucro, essa é a prioridade máxima”, afirmou Eder Gatti, presidente do Simesp.

Para Gatti, a busca desenfreada pelo lucro vai precarizar ainda mais as relações de trabalho de todos os profissionais, inclusive do médico. “A tendência é ampliar a terceirização, ao mesmo tempo que não darão abertura para o médico empreendedor. Serão criados grandes conglomerados, empresas menores serão absorvidas pelas maiores. E nesses conglomerados cria-se uma dinâmica de linha de produção: o médico será mais uma engrenagem nesse sistema”, enfatizou o presidente do Simesp.

Atualmente já existem hospitais que trabalham numa dinâmica de telemarketing. No pronto-socorro, por exemplo, o médico sofre uma pressão por quantidade, tendo que atender rapidamente os pacientes. “As previsões não são nada boas. Se hoje há exploração e insegurança, o cenário só tende a piorar no setor privado”, avaliou.

Sem sucesso

O Brasil não é um caso isolado, lembrou Luna Filho. Há uma tendência global de que empresas da área de saúde procurem investir em países emergentes. Lugares onde, até então, quase sempre esse tipo de atividade era restrita, ao capital local (fosse ele privado ou público). “Melhorou a saúde da Índia?”, perguntou. “Não melhorou”, o próprio respondeu.

A médica sanitarista Maria Angélica Borges também destacou, em programa disponível na internet, a mesma onda que se verifica, sobretudo, nos chamados países emergentes (como é o caso, entre outros, do Brasil e da China). No ano 2000, lembra a médica, a Índia abriu o país ao capital externo. “E ela não é nenhum exemplo de sistema de saúde para a população”, avaliou.

“O setor privado de saúde em mercados emergentes oferece retornos atrativos para os investidores. Em contrapartida, investimentos estrangeiros em estruturas privadas de saúde de países de renda média e baixa melhoraram pontualmente a qualidade de serviços hospitalares altamente especializados acessíveis a clientela restrita, mas também foram responsáveis pela disputa predatória por recursos humanos, agravando a falta de médicos e de outros profissionais de saúde nos estabelecimentos públicos e nas áreas remotas. No Brasil, os padrões atuais já sugerem que o uso excessivo do setor privado promove concorrência desleal com o setor público, drenando serviços, recursos humanos e financeiros do SUS”, escreveu Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, no artigo “O capital estrangeiro e a privatização do sistema de saúde brasileiro”.

“Com volatilidade e vocação especulativa, investimentos estrangeiros escolherão leitos, exames e procedimentos que geram altos retornos financeiros, principalmente serviços baseados em valores e preferências particulares, e que praticam a seleção adversa, afastando-se do atendimento a populações que vivem em áreas distantes de recursos assistenciais, do atendimento a idosos, crônicos graves, portadores de transtornos mentais e outros pacientes que demandam atenção contínua”, diz o mesmo artigo, publicado em abril de 2015, na revista mensal Cadernos de Saúde Pública (produzida pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, ligada à Fundação Oswaldo Cruz).

Na esteira da nova lei, em 28 de novembro de 2015, a Folha de S. Paulo noticiou que a americana United Health comprou o Hospital Samaritano de São Paulo por cerca de US$ 1,3 bilhão. Em 2012, a mesma companhia já havia adquirido a operadora Amil por US$ 4,9 bilhões, ainda de acordo com a reportagem.

“Pelo alvo ser um hospital filantrópico, a transação levanta questionamentos. Os hospitais filantrópicos se beneficiam com isenção tributária sobre patrimônios, rendas ou serviços – benefício que contribuiu para formar a estrutura que agora vai para uma empresa com fins lucrativos”, diz a matéria assinada por Claudia Collucci e Tatiana Freitas.

Para o professor Áquilas Mendes, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), é muito provável que ao invés de injetar dinheiro no país, empresas estrangeiras retirem mais capital do que o eventualmente investido.

Além disso, lembra Mendes, fusões ou aquisições não significam, obviamente, um aumento do número de leitos ou da capacidade de atendimento já que a estrutura, geralmente, mantém-se idêntica, mudando apenas os seus donos.

A reportagem da Folha de S. Paulo levanta outra questão importante: os hospitais filantrópicos, como é o caso do Samaritano, são obrigados por lei a destinar 60% da sua capacidade operacional para atendimentos pelo Sistema Único de Saúde ou 20% dos atendimentos em serviços gratuitos. Isso será ou mesmo tem sido respeitado?

É o fim do SUS como conhecemos?

Dez dias antes de Dilma Rousseff aprovar, em definitivo, a lei 13.097, organizações da área da saúde divulgaram manifesto, em 9 de janeiro de 2015, pedindo que a presidente a vetasse. O texto é assinado pela já citada Ampasa e ainda por entidades como o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), a Associação Brasileira da Saúde Coletiva (Abrasco) e a Associação Paulista de Saúde Pública.

“O domínio pelo capital estrangeiro na saúde brasileira inviabiliza o projeto de um Sistema Único de Saúde e, consequentemente, o direito à saúde, tornando a saúde um bem comerciável, ao qual somente quem tem dinheiro tem acesso. Com a possibilidade do capital estrangeiro ou empresas estrangeiras possuírem hospitais e clínicas – inclusive filantrópicas, podendo atuar de forma complementar no SUS –, ocorrerá uma apropriação do fundo público brasileiro, representando mais um passo rumo à privatização e desmonte do SUS”, diz trecho do manifesto.

Para a médica sanitarista Maria Angélica Borges, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, a nova lei sacramenta ou, ao menos, contribuirá bastante para o desmonte de toda a estrutura legal construída ao longo das últimas décadas na tentativa de efetivação do SUS.

“Todo o arcabouço do SUS é desenhado para dar condição de igualdade para entidades municipais, estaduais, controle social etc. Nesse arcabouço, o SUS acaba até do ponto de vista da construção institucional que nós fizemos para ele”, avaliou no programa “Sala de Convidados”, do Canal Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz.

Afinal, o Sistema Único de Saúde se estrutura com a participação dos três entes federativos (União, estados e municípios) e, além disso, há uma série de instâncias, como os conselhos de saúde, para que a população e representantes do poder público possam acompanhar a gestão e garantir a execução dessa política. Modelo que, na avaliação da médica, estaria ameaçado pela nova lei. “O arcabouço que a gente demorou 30 anos para construir e ter algum equilíbrio está jogado por terra”, lamentou.

Para a pesquisadora, a exemplo de outros especialistas no tema, o resultado dessa abertura não será “a expansão da capacidade instalada”. “É um movimento de fusões e aquisições. É uma intensificação disso”, avisou Maria Angélica.

“Urge”, como escreveu o professor Mário Scheffer, “uma agenda nacional de pesquisas que ofereça terreno para acompanhar o impacto do capital estrangeiro no processo de privatização nos vários componentes do sistema de saúde: no financiamento, na prestação de serviços, na gestão e nos investimentos em saúde”.

“A gente está em outra conjuntura. Era uma conjuntura de crescimento econômico”, lembrou Ligia Bahia sobre a época do grande lobby e da posterior aprovação da nova lei, o que, em sua opinião, fez com que o capital estrangeiro ainda não se interessasse em ingressar, de fato, no Brasil.

Em 23 de junho passado, o tema foi abordado no Simesp Debate, evento promovido pelo Sindicato dos Médicos de São Paulo para tratar de temas de interesse aos médicos. Na ocasião, Scheffer conclamou entidades ligadas ao setor e aos trabalhadores a se mobilizarem, a fim de que, daqui a alguns anos, “não cheguemos no ponto do que ocorreu com as OSs (organizações sociais), que foram surgindo, se disseminando” e tiveram sua existência legitimada no país.

“Se há uma notícia boa nisso tudo, talvez seja a de que essa crise está reascendendo uma mobilização conjunta, de novo, em defesa da saúde enquanto direito”, pontuou, complementando: “Essa situação precisa ser acompanhada de perto”.


* Texto publicado originalmente na revista DR!, do Sindicato dos Médicos de S.Paulo, a quem Outras Palavras agradece.

[1] Expressão criada pelo filósofo e economista Adam Smith, para se referir aos indivíduos que concentram grande poder econômico e, portanto, político em suas mãos. Mesmo sendo a figura que praticamente inaugura o liberalismo econômico, defensor do livre mercado e dos benefícios da “mão invisível” desse (outro termo criado por ele), Adam Smith reconhecia, já no século 18, que essa elite se guiava pelo seguinte lema: “Tudo para nós e nada para os outros”.


Leonardo Gomes Nogueira é jornalista e escritor.


FONTE. OUTRASPALAVRAS

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