O nacionalismo excludente ressurge na Alemanha
O perigoso renascimento de
uma força conservadora no país mais decisivo para a paz e estabilidade do
continente
por Antonio Luiz M. C.
Costa
"Senhora Merkel, eis
o Volk", diz o cartaz do Pegida, que ataca o cosmopolitismo europeu e
humanitário da premier como traição à raça
Na eleição de 4 de setembro
no Mecklemburgo, estado onde Angela Merkel fez sua carreira política e se
elegeu para o Parlamento, seu partido conservador, União Democrata Cristã (CDU
pela sigla em alemão) caiu de uma votação de 23% em 2011 para 19% e ficou em
terceiro lugar, depois dos social-democratas (SPD), que caíram de 36% para 31%,
e da xenófoba Alternativa para a Alemanha (AfD), que sequer existia na eleição
anterior, em 2011, mas conseguiu 21%.
O partido A Esquerda (Die
Linke), herdeiro do antigo Partido Comunista da Alemanha Oriental, caiu de 18%
para 13%, Os Verdes (Die Grünen) de 8% para 5%, e o neonazista Partido Nacional
Democrático (NPD) de 6% para 3%. O Partido Liberal (FDP) permaneceu nos mesmos
3% de há cinco anos.
Resultados semelhantes
haviam sido vistos no primeiro semestre nos estados de Baden-Würtemberg,
Renânia-Palatinado e Saxônia-Anhalt: em todos eles a CDU teve queda expressiva
em relação à eleição anterior e a AfD saltou do nada para porcentagens de dois
dígitos: respectivamente, 15%, 14% e 24%.
Duas semanas depois,
Berlim deu outro revés a Merkel, cujo partido pareceu ter chances de tomar a
maioria ao SPD no Legislativo da capital nas pesquisas de 2015, mas caiu de 23%
para 18%. Devido ao fracionamento partidário na cidade, ainda ficou em segundo
lugar. Também caíram os social-democratas (de 28% para 22%), os Verdes (de 18%
para 15%) e o Partido Pirata (de 9% para 2%). O FDP cresceu de 2% para 5%, a AfD
surgiu com 14% e A Esquerda cresceu de 12% para 16%.
Vale notar que Berlim tem
uma tradição libertária e vanguardista herdada dos jovens contestatários
incentivados por aluguéis baixos e isenção do serviço militar a se estabelecer
na metade ocidental da cidade durante a Guerra Fria. Que parte desses eleitores
tenha trocado verdes e piratas “alternativos” pela esquerda mais tradicional é
tão sintomático de polarização quanto a votação significativa da ultradireita.
A primeira-ministra
aceitou a responsabilidade pelas derrotas, embora defenda sua decisão de
permitir a entrada de cerca de 1 milhão de refugiados em 2015. É animador que
continue a defendê-la em princípio, apesar de ter recuado na prática ao
endurecer o controle nas fronteiras e negociar um acordo com o governo turco
para bloquear os migrantes na origem.
O jogo ambíguo do
movimento e do partido AfD com a linguagem nazista não passa despercebido aos
críticos.
Em contraste, a líder da
AfD Frauke Petry pede a proibição de minaretes e o uso de força armada contra
refugiados. Atacou o jogador da seleção alemã Mesut Özil por peregrinar a Meca.
Mais do que isso, parece empenhada em reabilitar o nacionalismo e lhe dá
matizes perigosamente reminiscentes do passado.
O debate sobre o manifesto
do partido, vazado por uma ONG em março, incluiu propostas para incentivar as
mulheres alemãs a ter três ou mais filhos, o fim de recursos para creches e
educação infantil, a redução da idade de responsabilidade penal para 12 anos, o
aprisionamento perpétuo de doentes mentais resistentes à terapia, a obrigação
de museus e teatros de promover a “cultura alemã” e não as estrangeiras.
A versão final, publicada
em maio, é menos explícita, mas esse espírito está presente e pede a mudança
dos currículos de história para acabar com a “ênfase” na crítica ao nazismo em
favor dos “aspectos positivos” da história. Assim como Marine Le Pen na França,
Frauke Petry é tática o bastante para conter os exaltados, modular o tom e
escolher os momentos certos.
Mesmo assim, dias após
publicar o manifesto, o partido preparou um evento em uma cervejaria onde Adolf
Hitler fez um dos seus primeiros discursos e só recuou ante o risco de
protestos em massa. Na
campanha em Berlim, Petry, mãe de quatro, criticou Merkel por não ter filhos
próprios (embora tenha participado da criação dos dois do segundo marido) e
insistiu em entrevista na necessidade de dar “sentido positivo” aos derivados
de Volk.
O termo primitivo ainda é
usado em alemão com o sentido não necessariamente racial de “povo”, mas desde o
nazismo seus derivados têm outro sentido, étnico e inequívoco: völkisch não
significa “popular”, mas “étnico”, pois exclui judeus e minorias e abrange
comunidades “germânicas” de outros países.
Entretanto, é rotina
cartazes de manifestações da AfD acusarem Merkel e seu governo de
volksverräter, “traidores da raça”, e uma mensagem de Natal do partido convocou
eleitores a pensar em sua responsabilidade para com a volksgemeinschaft,
“comunidade de sangue”, duas palavras-chave do discurso nazista.
Um impasse como o espanhol
na Alemanha é mais do que a UE ainda pode suportar (Wolgang Kumm/ DPA/
FotoArena)
Como os acenos semivelados
de Donald Trump ao racismo, são exemplos daquilo que nos Estados Unidos se
chama de dog whistle, uma mensagem pública teoricamente só ouvida pelo
destinatário. Na prática, quase todos a ouvem, mas o interessado sempre pode
alegar ser mal-entendido.
Ao ser fundada, em abril
de 2013, pelo economista Bernd Lucke e empresários contrários ao acordo com a
Grécia e dispostos a romper com o euro, a AfD tinha um viés eurocético análogo
ao do Partido Conservador britânico. Com o apoio de perto de 3% dos eleitores,
inicialmente procurou distanciar-se da xenofobia do movimento Pegida (sigla
alemã para “Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente”), nascido em
outubro de 2014 de uma comunidade do Facebook.
Entretanto, em julho de
2015, auge da crise migratória, a AfD foi tomada pela direita populista de
Petry e, segundo seu porta-voz Alexander Gauland, tornou-se uma “aliada
natural” do movimento islamófobo.
Apesar de Lutz Bachmann,
líder do Pegida, ter anunciado a criação de um partido próprio (FDDV, “Partido
da Liberdade e Democracia Direta do Povo Alemão”), 90% dos militantes pretendem
votar na AfD. Quanto a Lucke, diz que a AfD caiu nas “mãos erradas” e fundou
outra legenda, a Aliança para Progresso e Renovação (ALFA).
Em certos aspectos, o AfD
está à direita do velho NSDAP. Enquanto o hitlerismo oferecia direitos sociais
e trabalhistas (restritos, é claro, aos “arianos”) e impostos progressivos, o
partido de Petry pede redução de gastos sociais e imposto de renda linear de
20%. Os alemães dos anos 1930, empobrecidos e explorados pelas potências
vencedoras da Primeira Guerra Mundial e pelas elites, receavam a fome e a
miséria e a ultradireita precisava lhes oferecer uma alternativa ao comunismo.
Mas os abastados e
dominantes alemães dos anos 2010 não se interessam por socialismo, pois o
receio é a erosão da posição privilegiada pelo compartilhamento da prosperidade
com imigrantes e parceiros menos afortunados da Europa.
A isso se soma a posição
peculiar da população da antiga Alemanha Oriental, origem de Petry e Bachmann.
Anexada em 1990, mas nunca de fato incorporada à prosperidade ocidental, tem
PIB per capita 30% inferior e taxa de desemprego duas vezes maior. Recebe mais
de 100 bilhões de euros por ano em transferências da zona ocidental (4% do PIB
nacional e mais de um quarto do regional), um total de mais de 2 trilhões desde
a reunificação.
É uma Grécia dentro da
Alemanha e custa muito mais, a fundo perdido. Se a região quiser receber a
solidariedade da região ocidental e negá-la a imigrantes e sócios europeus, não
pode se justificar por uma ética liberal ou humanista, mas apenas pela carta
étnica. Situação análoga, diga-se de passagem, com a dos trabalhadores brancos
visados pela propaganda republicana.
Por ora, não parece
provável a AfD conquistar um governo estadual, muito menos o federal. Assim
como a Frente Nacional francesa, não parece por ora capaz de conseguir uma
maioria ou uma parceria majoritária com as forças tradicionais, mas lhe basta
firmar-se como o terceiro partido para tirar o sistema político dos trilhos.
Primeiramente, seu sucesso
instiga outras forças políticas a aderir à xenofobia e ao nacionalismo de
direita, como mostra Jens Spahn, um deputado jovem (36 anos) e homossexual
assumido, eleito pela CDU na Renânia-Vestfália e disposto a disputar com Merkel
a liderança do partido e do governo nas eleições federais de 2017.
Embora tenha contrariado a
maioria da CDU ao defender a união civil homossexual, é um conservador ortodoxo
em economia e assumiu o comando da “burcafobia” e da oposição no partido à
“ênfase excessiva nas questões humanitárias”.
O subtexto Volkisch do
discurso de Petry e correligionários alude à cosmovisão racista sem ter de
explicitá-la (Wolfgang Kumm/ DPA/ Foto Arena)
É o caminho da ala
eurocética do Partido Conservador representada por Boris Johnson e de Nicolas
Sarkozy, que em sua campanha como pré-candidato enfatiza a defesa da identidade
francesa e as restrições à imigração e naturalização, nega o aquecimento global
e ataca a “explosão demográfica”.
Mesmo forças de
centro-esquerda, como a ala blairista do trabalhismo britânico e a cúpula do
Partido Socialista francês, pedem restrições à migração para satisfazer os
xenófobos, postura que só tem servido para encorajar a ultradireita.
Em segundo lugar, a falta
de uma maioria clara e um clima de polarização podem ser paralisantes para um
regime parlamentar. Na Alemanha, Merkel pôde articular uma aliança entre os
conservadores e os social-democratas, mas isso ficaria mais difícil com a
ascensão da AfD e uma liderança mais à direita na CDU. Um impasse político como
o da Bélgica ou da Espanha em um país tão central quanto a Alemanha, combinado
com um governo mais nacionalista e xenófobo, pode ser mais do que a União
Europeia ainda pode suportar.
*Reportagem publicada
originalmente na edição 917 de CartaCapital, com o título "O retorno do
recalcado".
Post a Comment