ZADs: nova forma de resistir ao capital?
POR. PATRICK VIVERET
Patrick Viveret, filósofo do
pós-capitalismo, analisa as Zonas A Defender, em que ativistas
enfrentam projetos devastadores promovendo ocupações e experimentando
formas de convívio contra-hegemônicas
Entrevista a Christian
Losson e Sylvain Mouillard | Tradução: Inês
Castilho
Um novo elemento
passou a marcar, há meses, a paisagem política (e geográfica…) da França: as Zonas
a Defender ( Zones à Defender, ZADs). Não
são uma novidade absoluta – mas uma reelaboração. Em diversas partes do país,
eclodiram mobilizações contra grandes projetos ou obras, considerados
devastadores ambiental ou socialmente. Mas há ao menos duas novidades, em
relação a protestos semelhantes, presentes nas lutas sociais em todo o mundo há
décadas.
As novas ações têm
caráter territorial. Além de promover campanhas contra os projetos contestados,
ocupa-se os locais em que está planejada sua construção, para impedi-la. Na
região de Nantes, noroeste francês, centenas de
pessoas vivem, há mais de dois anos, numa área de 1,6 mil hectares, onde
está prevista a construção de um novo aeroporto internacional (Nantes já
possui um e está a apenas duas horas e meia, por trem, de Paris). No sudoeste
do país, outra ocupação contesta a construção de uma barragem sobre
o Rio Tescou. Afirma-se que ela servirá apenas um pequeno grupo de agricultores
capitalizados, e alagará o habitat de espécies animais e vegetais importantes.
Já no vale do Rio Isère, sudeste francês, confronta-se a destruição de parte da
Floresta de Chambaran, para que seja erguido em seu lugar um complexo
turistico… Embora tenham surgido em 2012, as ZADs multiplicaram-se
recentemente. Há dezenas delas,
a ponto de terem se tornado dor de cabeça para governantes interessados em
lançar novos empreendimentos.
A
segunda novidade são os experimentos pós-capitalistas. Cada ZAD converte-se num
laboratório de novas práticas. Cultiva-se sem agrotóxicos. Criam-se animais sem
confiná-los ou submetê-los a crueldades (um setor do movimento é ativamente
vegano). Vive-se em construções erguidas segundo métodos de permacultura. Considera-se que terra um bem-comum. Usam-se moedas
solidárias. Busca-se substituir as lógicas de competição pela colaboração e a
reciprocidade. Acolhe-se imigrantes, num continente onde cresce a sombra da
xenofobia. Busca-se ativamente tornar as comunidades inter-generacionais.
Em outro traço
marcante, as ZADs nutrem profunda desconfiança pelo sistema político
institucional, explica Nicholas Haringer, um estudioso do
altermundialismo. Seus participantes, em geral, perderam a esperança num
sistema democrático em crise e corrompido pelo poder econômico. Não aceitam
submeter sua luta a parlamentos em que não enxergam chances reais de debate
aberto ou de influência cidadã. Também por isso, resistem frequentemente a
ações da polícia. A ZAD de Nantes foi semi-destruída em outubro, por uma carga
brutal da polícia. Na que resiste à barragem sobre o Rio Toscou, um jovem de 21
anos foi morto em
dezembro, quando um bomba atirada em ato de repressão explodiu sobre suas
costas. Os incidentes não levaram os “zadistas” a recuar.
Que revela a
aparição deste novo fenômeno de luta social? Em entrevista ao jornal “Libération”,
traduzida por “Outras Palavras” e publicada a seguir, o filósofo Patrick
Viveret aponta o surgimento, no cenário político contemporâneo, de uma
“polarização criativa” — ainda que muito perigosa. Por um lado, diz ele, o
capitalismo tornou-se, desde a crise de 2008, muito mais desumano e
radicalizado: um “hipercapitalismo brutal”, em que 67 pessoas têm tanta riqueza
quando 3 bilhões de outras; e em que a financeirização tornou-se tão intensa
que o tempo médio de posse de uma ação de empresa reduziu-se a… 12 segundos!
Em resposta,
prossegue Viveret, também os movimentos que lutam por novas lógicas sociais
teriam derivado sua posição. Já não bastaria anunciar, nos Fóruns Sociais
Mundiais, que “um outro mundo é possível”. É preciso dizer que “outro mundo
possível existe” — ou seja colocar em prática desde já, ainda que de forma
localizada, ações que combinem resistência, visão transformadora e o que o
filósofo chama de “expermientação antecipatória”. Este tipo de atitude, imagina
Viveret, irá se mostrar ainda mais importante e inspirador caso a crise do
sistema continue a se aprofundar e a amputar direitos. Nesse caso, diz ele,
“devemos nos preparar para organizar a resilência nos territórios”. A
entrevista vem a seguir (Antonio Martins)
O que
significa a multiplicação das ZADs nas narrativas sobre a nossa sociedade,
hoje?
As ZADs agem qual um
espelho invertido. Elas contestam os modelos de crescimento, de produção, de
consumo. E de descarte: nossa época produz lixos e desperdício,
enormemente. Elas participam de um movimento muito mais amplo, que coloca a questão
do discernimento entre a utilidade e a inutilidade. Hoje, a economia dominante
é, de fato, mais que nunca caracterizada por sua dissociação da política e da
ética. Dissociação que o teórico do marginalismo, Léon Walras, resumiu da
seguinte maneira em seu tratado de economia política pura: “que uma substância
seja pesquisada por um médico para tratar ou por um assassino para envenenar é
uma questão muito importante de outros pontos de vista, mas completamente
indiferente do nosso. Para nós, a substância é útil nos dois casos.”
O que significa isso?
Este partidário da
economia social denunciava uma teoria que julgava natural eximir-se de qualquer
consideração sobre a natureza benéfica ou prejudicial das atividades
econômicas, ao não interessar-se senão pelo fluxo monetário que elas geram. A
resistência das ZaD contribui para questionar o tripé da crença dominante:
crescimento, competitividade, emprego. Um mantra que não se interroga nem sobre
a natureza do crescimento (que comporta vários elementos destrutivos) nem sobre
os vencidos na corrida pela competitividade (por exemplo o Mali, a África
Central, a Ucrânia), nem sobre a natureza do emprego (a Organização
Internacional do Trabalho fala de “trabalho decente” para melhor sublinhar a
expansão dos empregos indecentes).
As ZAD opõem cooperação a competição,
mas questionam também o capitalismo, o papel do Estado, as falhas da democracia
representativa?
Não foi preciso
esperar a chegada das ZADs para emergirem a resistência, ações,
experiências. Os Fóruns Sociais Mundiais (FSM), desde a primeira edição em Porto Alegre em 2001,
passando pelo FSM de Belém, igualmente no Brasil, em 2009, que colocaram a
questão dobien-vivir, ou do convivere, da “convivialidade”,
ou o próximo em Tunis, em março de 2015, apontam, de modo global, as mesmas
críticas. Existe, para usar a fórmula de Bénédicte Manier, “um milhão de
revoluções tranquilas”; milhares de alternativas, como as cristalizam o
movimento Alternatiba; coletivos como esse, por uma transição cidadã, onde um
mundo em mudança é experimentado, de modo criativo.
Estamos no “glocal”, a
interpenetração e rede de lutas globais e locais?
Sim. Com uma
sobre-representação das ZaD, na França, com relação a outras formas de luta e
de alternativas. Incluindo os protestos, às vezes violentos, sobre-explorados
pela televisão. Podemos certamente opor o fato de que a própria sociedade é
violenta, como o Estado ou as forças da lei. Mas é importante distinguir
conflito de violência. As formas de conflito não violento foram sempre,
historicamente, as mais eficazes e permitiram evitar que a violência se
voltasse contra seus próprios autores, como pudemos ver nas primaveras árabes.
A violência coloca em questão a erradicação do inimigo. Já o conflito questiona
os papeis sociais do adversário, sem atacar as pessoas. A democracia é a arte
de transformar inimigos em
adversários. A resposta à violência econômica, social,
societal, não pode ser outra forma de violência. As posturas do líder do Medef
[sindicato patronal francês], Pierre Gattaz, empenhado numa luta de classes de
ricos, são brutais e violentas e podem conduzir a respostas igualmente duras.
Assistimos, também, a articulações
inéditas em torno das ZaD, como nos movimentos por justiça climática, que
agregam associações legalistas constituídas, pequenos produtores ecológicos ou
militantes radicais em torno de diferentes ações que defendem interesses
comuns…
É verdade. Mas a
ocupação dos lugares contra os grandes projetos inúteis é conflito positivo,
não é violência. Não se deve dar prioridade ao desenvolvimento disso que
Wilhelm Reich, na Psicologia de Massa do Fascismo, evocava ao falar
de “praga emocional”. Quando as lógicas do medo e a tendência ao recuo
identitário importam mais que toda racionalidade. O economista e Prêmio Nobel
de economia Joseph Stiglitz fala de duplo fundamentalismo. O primeiro,
comercial, retoma o que Karl Polanyi, em A Grande Transformação ,
chamava de sociedade de mercado, mina os laços sociais, tensiona as
solidariedades, e vem nutrir o segundo: o fundamentalismo de identidade. Que
não é senão religioso, como mostra a Frente Nacional.
As ZaD, como outras experimentações,
ilustram também a carência de respostas políticas à altura dos desafios?
É necessária uma
outra abordagem da riqueza, mas também da democracia e do poder, diante do risco
de um sistema oligárquico. Uma democracia não pode definir-se somente por sua
parte quantitativa (a lei do número), que esquece a parte qualitativa: a
cidadania. Aqueles que lançam o alerta, por exemplo, podem ser muito
minoritários e, não obstante, oxigenar a mutação da democracia. Não há uma
representação legítima sem a forte participação dos cidadãos. Cada grupo de
atores, aí incluindo as ZaD, deve também aceitar que pode haver procedimentos
democráticos mais amplos, consultas reais aos cidadãos, que podem terminar com
referendos em
territórios. A tentação da imposição pela força é muito
presente na classe dominante, mas pode estar também entre os dominados.
Em 2001, o altermundialismo falava de
um “outro mundo possível”. Mas, apesar da crise, desde 2007 as lógicas do
capitalismo nunca foram tão ferozes. O que mudou em quinze anos?
Como em todos os
grandes períodos de mutação histórica, assistimos a uma dupla polarização. A
polarização regressiva: o hipercapitalismo, que jamais foi tão inumano, tão
brutal, traduz o fim de um ciclo; ele se radicalizou porque se sabe ameaçado.
Esta é uma característica do fim de ciclos históricos. Os últimos anos da
colonização francesa na Argélia foram, da mesma forma, os mais violentos.
Desde de 2008,
o sistema torna-se uma caricatura de si mesmo. Todos os indicadores de antes da
crise se agravam: jamais existiram tantos derivativos financeiros no
mundo, da ordem de 800 trilhões de dólares, segundo o Banco Internacional
de Compensações. Jamais o tempo médio de posse de uma ação foi tão curto: 12
segundos! O hipercapitalismo é incapaz de pensar os grandes desafios do século
21: ele ignora a “mundialização”, como dizia Edouard Glissant, por não
concentrar-se senão em “sua” mundialização, a globalização financeira. O que
diz esse mundo onde 67 pessoas, segundo a Oxfam, possuem tanto quanto 3 bilhões
de outras? Essa é a fratura que está se abrindo, num mundo que morre. A
humanidade se confronta com a obra de sua própria humanização.
E o que você chama de polarização
criativa?
Ela está
precisamente ali, como o mundo novo, o novo modo de viver junto. Passamos de um
“outro mundo é possível” a um “outro mundo possível existe”. Estamos no tripé
do sonho. O “R” da resistência, o “V” da visão transformadora que desenvolve o
imaginário, o “E” da experimentação antecipatória, tudo iluminado pelo “E” da [évaluation]
avaliação como discernimento. Devemos nos preparar para uma nova grande crise
e, portanto, para organizar a resistência nos territórios. A mudança de
perspectiva é essencial: uma abordagem diferente para a economia, a democracia,
a civilização, como defendido por Edgar Morin.
[1] Nas edições de Conexões
que liberam, 195 pp, maio 2012
FONTE. SITE OUTRASPALAVRAS
Patrick Viveret é filósofo no Instituto de
Estudos Políticos de Paris e um teórico particularmente inovador em temas como
Riqueza, Moeda, Crédito, Globalização e Democracia. Publicou, entre diversas
obras, "Reconsiderar a Riqueza" (Ed. UnB, 2006) em que disseca a
parcialidade de cálculos como o do PIB e os interesses que há por trás deles.
Participa ativamente, desde 2001, dos Fóruns Sociais Mundiais. Colabora
atualmente com a revista francesa Territoires.
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