Pedagogia da mordaça: esperança de formar cidadãos que não pensam
Para especialistas, projeto Escola sem Partido viola o
grande objetivo das escolas: educar, por meio do estudo das diversidades e do
conhecimento científico
"Escola Sem Partido: proposta ficou adormecida até recentemente, quando foi encampada por parlamentares de partidos conservadores"
Por Rodrigo Gomes
Ao chegar na escola em que trabalha, o professor de
Biologia é chamado à sala da diretoria. O diretor informa que ele está
suspenso. Dois policiais o aguardam para levá-lo a prestar esclarecimentos na
delegacia. O motivo? A aula do dia anterior, sobre a teoria da evolução, do
inglês Charles Darwin, contrariou as crenças de alguns alunos e seus pais. O
enredo, fictício, pode se tornar uma cena factível no futuro da educação
brasileira, se o projeto denominado Escola Sem Partido virar lei. A ideia
inspira dois projetos em tramitação no Congresso, em sete Assembleias
Legislativas e 12 Câmaras Municipais.
O Escola sem Partido contesta qualquer afronta a
convicções religiosas ou morais dos pais e dos alunos e a apresentação de
conteúdo "ideológico" aos estudantes, considerados
"vulneráveis" ao professor – nesse caso há uma evidente
partidarização, pois somente conteúdos considerados de esquerda são citados. O
projeto foi idealizado em 2004, pelo procurador paulista Miguel Nagib, depois
de um professor de sua filha comparar Che Guevara a São Francisco de Assis, em
virtude de ambos abandonarem a riqueza pela causa em que acreditavam.
A proposta ficou adormecida até recentemente, quando
foi encampada por parlamentares de partidos conservadores. Em abril, uma lei
(7.800) baseada na proposta do Escola sem Partido foi aprovada em Alagoas. O
governador Renan Filho (PMDB) vetou o texto aprovado na Assembleia Legislativa,
mas os deputados estaduais derrubaram o veto. O advogado-geral da União, Fábio
Medina Osório, disse considerar inconstitucional a lei alagoana. Na Câmara e no
Senado, o projeto foi apresentado, respectivamente, pelo deputado Izalci Lucas
(PSDB-DF) e pelo senador Magno Malta (PR-RO).
Seus defensores propõem medidas como afixar cartazes em
salas de aula indicando o que o professor pode ou não abordar. Quem desobedecer
deve ser denunciado à Secretaria da Educação e ao Ministério Público. Para o
autor da proposta, "é fato notório" que professores e autores de
livros didáticos usam aulas e obras como meio de "obter a adesão" dos
estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas. "E para fazer
com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente
moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou
responsáveis", justifica Nagib, em sua página na internet.
O nome do movimento tem certa dose de esperteza. Nenhum
especialista ou leigo preocupado com educação quer uma escola "com"
partido. Ninguém almeja que seus filhos saiam da escola bradando palavras de
ordem, desta ou daquela ideia. Mas o que o projeto propõe já está contemplado
na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases (LDB): liberdade de
aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. E o que ele cria,
efetivamente, são proibições de abordar teorias que contrariem crenças ou convicções
de seus autores.
Para professores, estudantes e especialistas, a
proposta pretende calar professores e esvaziar a educação brasileira de
conteúdos críticos ao funcionamento da sociedade. "Na prática, não se
poderá debater assunto nenhum. Porque tudo vai contrariar crenças. O projeto
determina que você deve respeitar os valores de cada aluno. Isso já é obrigação
da escola. Esse vai ser um processo de criminalização do professor. A Escola
sem Partido é uma lei da mordaça", avalia o professor João Cardoso Palma
Filho, membro do Conselho Estadual da Educação de São Paulo.
Adam
Smith x Marx
Darwin, Marx e Che: o cientista, o filósofo e o guerrilheiro não teriam espaço na escola sem partido
Como trabalho de classe solicitado pela professora de
Sociologia Gabriela Viola, alunos do Colégio Estadual Professora Maria Gai
Grendel, do bairro Caximba, em Curitiba, fizeram ua paródia do funk Baile de
Favela baseados nas aulas a respeito das ideias do filósofo alemão Karl Marx –
autor de O Capital e expoente teórico do comunismo. Postado na internet, o
vídeo repercutiu entre defensores do Escola sem Partido, que cobraram o
afastamento da professora. No entanto, ela já havia passado conteúdos com as
ideias de outros pensadores, sem ser incomodada.
Ao utilizar um funk para transmitir e consolidar a
compreensão do tema, Gabriela buscou se aproximar da realidade dos jovens, algo
que vem se tornando cada dia mais comum nas escolas, como observa o coordenador
da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara. "A didática
ensinou que para aprender, para querer aprender, o aluno precisa ter uma aula
envolvente, precisa dialogar com a realidade dele. O que nega também essa ideia
de que eles são completamente passivos diante do professor. Qualquer um que
conheça a realidade da sala de aula sabe que isso é falso."
Daniel questiona como um professor terá condições de dar
uma aula sobre a Revolução Industrial, ou sobre a luta das mulheres pelo
direito ao voto, ou sobre os movimentos de trabalhadores contra o trabalho
infantil nos séculos 19 e 20, sem apresentar características de um lado e de
outro da história. "É impossível, essa aula não consegue ser dada. O que
se quer é ter somente uma versão da história, uma única visão do mundo",
afirma.
Para o professor de Ética e Filosofia Política da
Universidade de São Paulo (USP) Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação,
se o objetivo do projeto é evitar a doutrinação, ele devia exigir maior
pluralidade de conteúdo, teórico e de ideias, no currículo escolar. Mas de
maneira nenhuma vetar determinados conceitos. Um curso de Sociologia ou
Economia, explica Janine, deve mencionar tanto a visão de Marx sobre o
capitalismo como a de Adam Smith –
liberal, criador do conceito de "mão invisível do mercado". São
autores que representam posições diferentes, mas que não podem ser ignorados
por sua contribuição para o saber humano.
Para Janine, o objetivo da escola é transmitir
conhecimento científico, por isso não se podem aplicar restrições a conteúdos
por razões ideológicas ou religiosas. "A escola não tem incumbência de
doutrinar a pessoa nem de respeitar a doutrinação religiosa da família. A
escola educa. E para educar ela tem de transmitir conhecimento que tem base
científica. As pessoas podem acreditar no criacionismo ou não, mas ele não pode
ser ensinado na escola, porque trata-se de fé, não de conhecimento
científico."
O professor avalia que não é possível considerar a
escola como maior formador ou deformador da moral de crianças e adolescentes,
descartando o papel da própria família, da igreja e a mídia. "A educação
é, nesse conjunto, o protagonista mais fraco. Não me parece justo que seja o
único a ser criminalizado", afirma.
Religiosidade
e autoritarismo
Apesar de, como o ex-ministro, especialistas e
educadores defenderem que a escola deve ser laica – sem controle ou influência
de nenhuma religião –, a inserção da fé no espaço educacional vem ganhando
terreno nos últimos anos. O Decreto federal 7.107, de 2010, determina que o
ensino religioso "católico e de outras confissões religiosas" deve
ser constituído como "disciplina dos horários normais das escolas públicas
de ensino fundamental". O Projeto de Lei 309, de 2011, do deputado Marco
Feliciano (PSC-SP), impõe o ensino religioso como "disciplina obrigatória
nos currículos escolares do ensino fundamental" e regulamenta o exercício
da docência desse conteúdo.
A Constituição contempla o ensino religioso desde 1988.
O tema foi reafirmado na LDB, de 1996. Atualmente, está sendo incluído como
conteúdo dos nove anos do ensino fundamental na proposta da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) – em discussão no Ministério da Educação. Filosofia e
Sociologia ficarão relegadas ao ensino médio. Esse processo pode estar
relacionado aos objetivos do Escola sem Partido, na avaliação do doutor em
Educação Luiz Antônio Cunha, professor emérito da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ).
"Escola sem Partido é uma perna de um projeto mais
amplo. Não basta calar, é preciso colocar algo no lugar. Quem mais está agindo
para educar dentro da escola pública, nessa perspectiva que se evite o
pensamento crítico? São aqueles grupos que pretendem desenvolver o ensino
religioso", afirma Cunha. Para ele, o maior objetivo dessa proposta é o
esvaziamento de conteúdos ligados às ciências naturais e sociais.
O ato de fazer da educação um espaço vazio de crítica,
carregado de exaltação ufanista e de ideais de "moralização" da
sociedade começou na ditadura do Estado Novo e se aprofundou após o golpe de
1964. Para o professor Alexandre Pianelli Godoy, doutor em História Social pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é esse viés, mais
autoritário do que pedagógico, disfarçado de proposta de "educação
neutra", o que move os defensores do Escola sem Partido.
No entanto, avalia Godoy, esse movimento contemporâneo
tende a ser mais autoritário. Durante a ditadura, embora houvesse cartilhas e
vigilância, os docentes não eram pressionados a ensinar desta ou daquela
maneira. "Há um retrocesso se voltando contra os conteúdos. Viver em uma
democracia com práticas autoritárias acaba com o debate de ideias e com a
própria democracia", afirma.
Fechada para o debate, esvaziada de conteúdo crítico e
sem conflitar com convicções morais ou religiosas, a escola pode também se
tornar incapaz de funcionar como ferramenta civilizatória contra a
discriminação. A professora Rosilene Corrêa de Lima alerta que, com o educador
proibido de afrontar as convicções religiosas ou morais dos alunos ou de seus
pais, conflitos entre estudantes devem se agravar.
"Se um aluno homossexual ou de uma religião não
cristã for discriminado por outro, de visão adversa, o professor não poderá
intervir. Pois estaria questionando valores religiosos. Na prática, o Escola
sem Partido vai liquidar os avanços em direitos humanos que tivemos nos últimos
anos", afirma Rosilene, que é diretora do Sindicato dos Professores do
Distrito Federal (Sinpro-DF).
Qual o interesse
A proposta Escola sem Partido, segundo os
especialistas, serve também para encobrir temas importantes da educação que
estão em debate atualmente. Ao menos dois projetos com impactos significativos
à área estão em discussão. Um é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241.
O projeto busca limitar ao reajuste inflacionário a evolução dos recursos
públicos para gastos sociais.
"Isso significa que não vai ter dinheiro
novo. Sem isso não vai dar para fazer nada do que precisa ser feito na educação
e não vai dar para cumprir o Plano Nacional da Educação. A partir de 2017,
nenhuma escola pública vai ser construída, nenhum professor vai poder ter ganho
real de salário", diz Daniel Cara.
O segundo tema, alerta ele, é a BNCC, em discussão no
Ministério da Educação, com pouco acompanhamento da sociedade, exceto por
organizações e empresários da área. "Em vez de debatermos essas questões
estamos fazendo um debate sobre algo que, honestamente, não tem nenhum sentido
pedagógico."
Além disso, o endosso ao projeto por parlamentares de
partidos conservadores tem sido visto, pelos estudantes, como uma resposta às
recentes mobilizações, em várias partes do país, contra projetos de concessão
da educação à iniciativa privada (como o de Marconi Perillo, em Goiás), de
reorganização escolar (como o de Geraldo Alckmin, em São Paulo) e mesmo contra
as mobilizações por melhorias estruturais e salariais.
"Querem eliminar toda a organização social que
hoje está fazendo com que professores entrem em greve, que estudantes ocupem,
fechem e paralisem escolas, que protestem. O Escola sem Partido é só um ponto
de partida, um AI-5 da educação (referência ao Ato Institucional Nº 5, que
iniciou o período mais violento da ditadura)", diz a presidenta da União
Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Camila Lanes
Camila Lanes: 'Querem eliminar toda a organização social que hoje está fazendo com que professores entrem em greve, que estudantes ocupem, fechem e paralisem escolas, que protestem'
O projeto conquistou a antipatia de empresários do
setor. Um manifesto conjunto de tradicionais colégios particulares de São
Paulo, entre os quais Mackenzie, Santa Cruz, Vera Cruz e Bandeirantes, defendeu
que o Escola sem Partido pode "cercear e até inviabilizar o trabalho
pedagógico".
Em 14 de julho, foi lançada no Rio a Frente Nacional
contra o projeto Escola sem Partido, reunindo professores, estudantes,
sindicatos, movimentos sociais, associações de classe e partidos políticos. A
ideia é pressionar parlamentares e mobilizar a sociedade para garantir o livre
exercício de um direito universal: a educação.
PADRÕES
DE CONDUTA
O movimento Escola sem Partido divulga um
"anteprojeto" de lei estadual com suas diretrizes (abaixo). Genérico,
o texto veda práticas que comprometam "o natural desenvolvimento da
personalidade" dos alunos, enfatizando "postulados da ideologia de
gênero". A proibição se amplia a tentativas de "doutrinação política
e ideológica" e atividades "de cunho religioso ou moral"
conflitantes com as convicções dos pais ou responsáveis pelos estudantes.
Anteprojeto
de Lei Estadual e minuta de justificativa
Art. 1º...
VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a
educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
Parágrafo único. O Poder Público não se imiscuirá na
orientação sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de
comprometer ou direcionar o natural desenvolvimento de sua personalidade, em
harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada,
especialmente, a aplicação dos postulados da ideologia de gênero.
Art. 2º. São vedadas, em sala de aula, a prática de
doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a
realização de atividades de cunho religioso ou moral que possam estar em
conflito com as convicções dos pais ou responsáveis pelos estudantes.
Art. 6º. As reclamações relacionadas ao descumprimento
desta Lei serão dirigidas, sob garantia de anonimato, à Secretaria de Educação,
e encaminhadas, sob pena de responsabilidade, ao órgão do Ministério Público
incumbido da defesa dos interesses da criança e do adolescente.
Justificativa
É fato notório que professores e autores de livros
didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a
adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para
fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral –
especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por
seus pais ou responsáveis.
Fonte. Site REDE BRASIL ATUAL
UM IMBECIL QUE SE ELEGE DEPUTADO FEDERAL PARA DEFENDER UM TIPO DE PROPOSTA IMBECIL E RETROGRADA DEVERIA SER AFASTADO POR INCOMPETÊNCIA.
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