Uma muçulmana na luta pela paz
TEXTO:Marisa Beserra
Ainda pela manhã, em um domingo de alta temperatura e calmo, me
direcionava à casa de Marcia Karine. Depois de subir alguns lances de uma
escada de pedra de mármore, me deparei com uma placa em sua porta que trazia
escrita uma mensagem em árabe e traduzida abaixo em português – “Em nome de
Allah nós entramos e em nome de Allah, nós saímos, e em nosso senhor nos
apoiamos” – A mensagem me recepcionava do lado de fora enquanto esperava sua
chamada. Após alguns segundos, trajando seu Hijab (conjunto de peças femininas
exigido pela doutrina islâmica) adentrei seu apartamento que não escondia seu
gosto sensível, porém estilizado, no qual paredes e acessórios de cozinha de
cor rosa choque davam o tom de seu apartamento. Era uma mistura de essência
feminina com artigos da cultura islâmica. Com cheiro de café quente e um pouco
de tapioca à mesa, nossa conversa iniciou-se.
Marcia Karine, residente do interior de Antônio Diogo, distrito
de Redenção, mora em Fortaleza há vinte e sete anos. Entretanto, carrega
consigo características de outro lugar conhecido também por ser seu clima
quente, o Oriente Médio. Adepta da religião mulçumana, Karine é uma cearense
que escolheu para si ir ao encontro dos ensinamentos de ALLAH.
“Eu conheci o Islã quando tinha 12 anos, mas naquela época não
tinha muitas informações sobre. Então deixei para lá. Quando adulta voltei a
procurar sobre a religião, pois já tinha internet, essas coisas, e fazia muitos
questionamentos sobre a religião católica que ela não me respondia, não me
preenchia, e no Islã, não, ele me preencheu.”
Quando Karine veio para Fortaleza, em meio a tantos
questionamentos sobre sua religião, um passeio pelo calçadão da Beira Mar,
típico ponto turístico da cidade, trouxe a fonte de suas respostas. Ela se
deparou com um casal de origem libanesa, porém nacionalizados brasileiros, que
estavam passando suas férias na terra da luz, Fortaleza. “Quando conheci eles,
falaram sobre a religião mulçumana e me mandaram uma caixa de livros sobre a
religião. Estudei e me converti”, comenta, lembrando enquanto se atentava aos
detalhes daquela época que ainda era leiga no assunto.
Somente morando com o filho, Karine faz o papel de uma mulher
independente e convicta de que não precisa de homem nenhum para se virar.
Contudo, quando é questionada sobre o papel da religião em sua vida, fala com
dificuldade nas mudanças que lhe foram apresentadas, porém em uma frase, ainda
com o tom romântico, revela: “É como se eu tivesse encontrado a outra metade da
minha vida”.
Filha de família simples, sua realidade naquela época em que
residia em Antônio Diogo
a ensinara valores e mostrava o quão difícil a vida podia ser. “Se hoje é
difícil, antigamente era muito mais. A gente não tinha acesso à luz. A luz só
foi chegar quando eu tinha uns sete anos lá no interior. A gente vivia à
lamparina mesmo”.
Mas para sua sorte, sua família ainda tinha como se virar e não
fazia parte do povo mais necessitado. O exemplo que cita era de quando era
menina e estudava nas escolas públicas de sua terra. O pai, que parecia ser
muito sábio por sinal, a instruíra para que não consumisse a merenda da escola,
pois naquela época a merenda era algo difícil de ter todos os dias e quando
tinha era passível de estar vencida por racionamento das próprias funcionárias
do colégio que guardavam a merenda para ver se durava por mais dias.
“Tinha crianças que eram filhas de agricultores e a gente estava
no período de seca, eram pessoas que não tinham recurso nenhum. Então as
crianças iam para escola para comer, era a única alimentação do dia delas,
então meu pai dizia para a gente pegar a merenda e dar para essas crianças. A
escola ficava na nossa rua e a minha mãe depois ia deixar a merenda na escola.”
Em sua criação o aprender a compartilhar era regra da casa.
Lembra outro fato inusitado, no qual ter uma simples televisão em casa era um
privilegio de poucos. E como mais uma lição de vida do seu pai, relembra de
quando seu tutor fazia questão de deixar a porta de casa aberta para outras
crianças entrarem e assistir a programação da época.
“Ao contrário das outras casas, que as crianças pobres tinham
que ficar na janela, meu pai era o contrário. Meu pai abria a porta, e ai de
mim ou dos meus irmãos reclamar por a porta estar aberta. Se eu estivesse
assistindo televisão e as crianças de rua passassem, elas podiam entrar, sentar
e assistir na sala. Não tinha essa de que, ai porque é pobre ou é negro vai
ficar do lado de fora. Com o meu pai não tinha isso”, relembra das lições do
pai.
A luta em prol dos refugiados
Karine cresceu, conheceu a religião islâmica e achou que devia
ajudar aqueles que compartilhavam da sua fé, não só por uma questão de
afinidade religiosa, mas porque durante toda sua vida ela desenvolveu o sentimento
de empatia por todos aqueles que sofrem, que de alguma forma são injustiçados.
Ao se engajar em ONG’s, Karine começou a viajar para os países do Oriente
Médio, sua primeira passagem foi pela Faixa de Gaza onde fotografou crianças e
seus modos de vida precários.
Karine pensou no projeto Infância Refugiada em 2014 durante a
realização de um trabalho humanitário na Turquia, o objetivo é captar fundos
para a ONG Al – Wafaacampanig que trabalha com projetos educacionais para
compra de materiais escolares. “Queria usar minhas fotos para ajudar as
crianças refugiadas que estão fora da escola”. A compra e distribuição de
material escolar não soluciona o problema da maioria das crianças refugiadas na
Turquia, pois, segundo Karine, embora existam escolas públicas na Turquia,
estas ficam muito distantes do local onde as crianças vivem. “Tem que pegar
ônibus, os pais estão desempregados, muitas delas são sozinhas, não tem pai nem
mãe. Entre os refugiados estão também professores, então a ideia seria criar um
espaço que funcionaria como uma escola”, diz Karine.
O projeto já passou por várias fases. No início, Karine tentou
patrocínio com várias empresas para realizar a exposição de fotos no Brasil,
mas as respostas foram todas negativas. Recentemente ela tentou uma arrecadação
de fundos numa plataforma de financiamento coletivo internacional. “Consegui
muito pouco dinheiro, mas que deu para fazer a exposição de fotos na Holanda e
agora estamos tentando novamente numa plataforma de financiamento coletivo no
Brasil”, relatou. O financiamento coletivo nacional que agora Karine está em
busca é feito através da plataforma online Catarse, onde o projeto de
fotografias será exposto e lá as pessoas poderão doar dinheiro em troca de
brindes como canetas, camisas, etc. No momento Karine está tentando captar
recursos com sindicatos em geral para custear os gastos com as gráficas que vão
produzir os produtos que servirão de brindes para os colaboradores do
financiamento coletivo. Karine se emociona ao falar da falta de recursos pela
qual passa todos os refugiados daquela zona de conflito. Muitas pessoas,
refugiadas pela segunda vez, encontram-se apátridas, não sabendo a quem
recorrer, uma vez que estão à mercê das decisões de outros líderes e
autoridades em terras de costumes e cultura tão diferentes das suas.
Outro projeto de autoria de Karine é o de palestras voluntárias
nas quais ela leva o conhecimento sobre a religião islâmica e sobre a atual
situação de conflitos no Oriente Médio. “Quando as instituições me convidam eu
vou dar palestras sobre a religião islâmica, uma maneira que eu encontrei de
diminuir o preconceito. Nessas palestras não falo só sobre a religião, dentro
do conceito de religião ressalto a importância sobre o respeito, cultura e
convivência”. É um trabalho inteiramente voluntário, nesse Karine não conta com
patrocínio de ninguém e encontra certas dificuldades quando instituições como
escolas e universidades não se mostram muito hospitaleiras com relação ao tema,
ou mesmo, quando segundo Karine, as pessoas de pensamentos mais radicais se
fazem presente em maioria.
O café acabou assim como a tapioca servidos na chegada por
Karine, ela exibiu seu passaporte recheado e carimbos dos lugares onde esteve
ao longo dos anos, e por fim mostrou as fotos da exposição Infância Refugiada.
“Penso que eu serei a pessoa mais realizada do mundo quando conseguir tocar
essa exposição em frente e puder ajudar aquelas crianças”.
Onde pode nos encontrar
Karine Garcêz: https://www.facebook.com/karine.garcez
Instagram:refugeechildhood
Twitter: refugeechildhood
Observação. Fotos Arquivo Pessoal
Amei. Muito obrigada pelo apoio
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