ROLEZINHOS DO BOLSONARO
Episódios de
celebração ao deputado Bolsonaro vêm se banalizando no país. Nada grave, se
suas ideias, em fase de questionamento de decoro no Conselho de Ética da Câmara
e no STF, não ofendessem aos princípios estruturantes do Estado brasileiro e à
dignidade de inúmeros segmentos sociais. Compreensível, se tais atos não
misturassem o culto a uma pessoa, com o festejo de sua ode doentia
anti-homoafetiva, sua histeria pandemônica contra ideias progressistas,
veneração abjeta de personagens consideradas ultrajantes pelo país, como o
ex-chefe do DOI-CODI/SP, torturador Carlos Alberto Ustra, em apologia
indiscutível ao regime de exceção instaurado em 1964, o
qual surrupiou a democracia nacional, fazendo letra morta não só de garantias
de proteção individuais, como de prerrogativas políticas dos cidadãos. Nada a
opor-se, portanto, se esses “rolezinhos” de mau gosto não se prestassem a
propagar o fascismo, livre e abertamente, Brasil adentro.
Diante de assombrosa circunstância, é válido resgatar a lição
extrema demonstrada no documentário“Hitler on Trial: The Truth Behind the
Story", que retrata a saga do advogado Hans Litten, o qual, em 1931,
requereu a intimação de Hitler para testemunhar, em julgamento de membros da
S.A (força paramilitar antecessora da S.S) acusados de agredirem e exterminarem
comunistas. Além de fazer justiça no caso concreto, o causídico nunca escondeu
que era seu objetivo mostrar que o incipiente Partido Nazi, à época encantando
a classe média germânica com hinos conservadores, ancorava-se nos direitos de
liberdade de pensamento e expressão para estimular o ódio, estando por trás de
uma onda de violência que, se tolerada e ungida ao poder, poderia pôr em risco
o Estado democrático alemão. Dito e feito! O tribunal claudicou, a testemunha
dois anos depois chegou ao poder e o resultado todo mundo conhece: a democracia
de Weimar foi implodida, com a humanidade chegando ao extremo do aniquilamento
moral na II Grande Guerra.
Diz-se discurso do ódio a maneira ardilosa, possivelmente
virulenta, de um segmento da sociedade se posicionar contra outro segmento.
Trata-se de uma postura discriminatória, cuja ocorrência tem por base um
preconceito movido por grupo social contra outro, devido a circunstâncias
fundamentadas em diferenças de cor, gênero, procedência, orientação sexual,
prática religiosa, etc, etc, inclusive, ideário político.
O constitucionalismo moderno inadmite a existência de direitos
fundamentais individualmente absolutos, pois entende que absoluto é tão-somente
o conjunto integrado e interdependente de garantias essenciais reconhecidas
pelo Estado. Assim, em tese, os direitos de manifestação e de expressão devem
ser sempre admitidos, desde que não irrompam contra garantias semelhantemente
consideradas fundamentais para o próximo, tomando-se como ponto de partida os standards sociais coletivos de fraternidade e
igualdade. No caso concreto da ação e do discurso, havendo possíveis colisões
entre alternativas jurídicas, no afã de modular o caráter ético da liberdade
insculpida no art. 5º, IV, “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado
o anonimato", a Constituição impõe um necessário contraste entre a
potencialidade da ofensa e as consequências da possível vulneração dos direitos
fundamentais dos terceiros correspondentes. Tal ponderação não pode deixar de
considerar, por exemplo, a existência de garantias relevantes para o conjunto,
como as seguintes petrificadas na própria Constituição: a República Federativa
do Brasil constitui-se em Estado democrático de Direito e tem como fundamentos
a cidadania (art.1º, inciso II), a dignidade da pessoa humana (art.1º, inciso
III) e o pluralismo político (art.1º, inciso V); constituem objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre,
justa e solidária (art. 3º, inciso I), a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação (art. 3º, inciso IV); a República Federativa do Brasil rege-se
nas suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos
humanos (art. 4º, inciso II); todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza (art. 5º, caput).
Portanto, uma vez verificada a ofensa (ou mesmo a possível ofensa)
a quaisquer das garantias coletivas e alheias supramencionadas, devem a
manifestação e o discurso, efetiva ou iminentemente agressivos, ser repelidos
pelo sistema jurídico, com a imputação ao agressor (ou potencialmente agressor)
de todas as consequências que a espada da Justiça puder dispensar à situação, a
fim de que permanentemente se recorde que a democracia brasileira tolera tudo,
menos a intolerância, havendo cada indivíduo de suportar as consequências
jurídicas que a lei prescrever ante o prejuízo da dignidade do próximo. Se, por
um lado, as instituições jurídicas não podem ignorar a igualdade de dignidade
entre as pessoas; por outro lado, o sistema nacional de justiça não deve, sob
hipótese alguma, subestimar o potencial lesivo do fascismo. A história já
mostrou que fascistas só respeitam liberdades de manifestação e de expressão
quando lhes são convenientes. Numa democracia verdadeira, discurso do ódio e
fascistas não passam.
Por: Marcelo Uchôa
Advogado e Professor Doutor de
Direito/UNIFOR
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