O Estado e as ocupações: a autogestão possível e a autogestão necessária
Não se pode pedir de uma escola
que ela vá formar pessoas desconectadas das demandas da sociedade em que vive —
mas ela pode certamente fazê-lo de maneira que contribua para o fortalecimento
de relações alternativas às atuais relações de produção. Por Grouxo Marxista
[os secundaristas] Fizeram a tarefa que nem o sindicato e nem o
quadro dos professores se atreveram a fazer: disputar o espaço escolar e suas
práticas. (…) O sindicato e mesmo muitos professores desses estudantes
desestimaram esses sinais. “Esta luta é da categoria”, diziam, “agradecemos a
solidariedade”. Poucos viram nessas manifestações que despontavam o indício de
uma energia que se gestava na profundidade. E, claro, temiam ser acusados de
aliciar menores para finalidades próprias, corporativas. A luta era vista,
também por eles, na opacidade da sua superfície discursiva: é luta por salário.
Mas o que emergia da ação dos estudantes, com o nome “solidariedade”, que pouco
contribuía a revelar a potência que os motivava, era uma disputa política:
disputa pelo poder na escola. Silvia Beatriz Adoue, Ocupações de Escola II: Da
Autocracia à Autogestão
Os
dilemas do exercício do poder no espaço das escolas e as dificuldades de lidar
com as funções dessa formação sociocultural foram também fundo oculto da
disputa que se deu em Goiás na luta das ocupações contra as Organizações
Sociais. Disse em outro texto, tratando das revoltas populares do transporte,
que:
A normalidade operacional do
sistema (…) funciona através de um frágil equilíbrio de poder entre usuários,
trabalhadores e gestores. (…) As revoltas populares permitem que os usuários
estendam sua porção de poder nesse equilíbrio para outros limites. Esse limite
novo também implica um novo exercício desse poder, isto é, novos problemas
necessitam de ser formulados, e novos conhecimentos que necessitam de ser
desenvolvidos.
Por meio
da tática das ocupações, o equilíbrio de poder pendeu subitamente para o lado
dos secundaristas e educadores que tentaram fazer da escola algo diferente do
que simples formação de força de trabalho subserviente. Isso trouxe novos
problemas para os lutadores e novos problemas para o Estado, que tenta retomar
sua porção de poder nessas instituições.
Essa
situação de duplo poder gerou uma crise em que os sujeitos tiveram que mudar
radicalmente suas formas usuais de ação para responder às novas circunstâncias.
Procurarei entender aqui algumas delas e como esse poder popular que ampliava
seu escopo precisou ampliar suas atividades e seu público – ou desaparecer. O
Estado estimulou mobilizações pela fórmula “autônoma” – se apropriando da
estética, dos símbolos, até da retórica sem líderes e “protagonismo
secundarista”. A autogestão surgiu desse confronto inédito e surgiu incipiente,
como uma necessidade prática para responder aos problemas da luta, não como
parte de uma estratégia pré-concebida e aplicada. E no entanto era a solução
mais racional e estratégica que poderia haver diante dos dilemas profundos que
a luta colocava.
A) Pequena
cronologia necessária
Para
compreender um pouco por que o movimento das ocupações se comportou da maneira
que se comportou, é importante estabelecer uma rápida cronologia que permita
entender quem tomou a frente das ações mais decisivas – a massa secundarista.
Os
secundaristas também começaram a se mobilizar e, inspirados na luta de São
Paulo e confluindo com professores e universitários críticos às formas
tradicionais de luta, criam um espaço próprio de organização nos moldes também
paradigmáticos da cidade: aberto, horizontal, autofinanciado, plural etc. Mas
havia algumas diferenças importantes desse espaço secundarista com o Contra a
Terceirização: articulava estudantes a partir das suas escolas, tinha como
objetivo uma radicalização que de fato garantisse a vitória da pauta e ocorria
em horários, locais e com uma dinâmica mais propícia à participação
secundarista.
Depois de
três manifestações do roteiro ir-até-o-orgão-público-sem-resultado,
que foram reduzindo em número de participantes, esse espaço secundarista que
decidiu se nomear Secundaristas em Luta – GO decide tomar a frente e ocupa uma
escola levando a reboque o movimento “mais amplo”. Essa ocupação incita a Ubes
(União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) de Goiás a também se
movimentar, assim como a Secretaria de Educação e o Governo do Estado –
precipitando a multiplicação das ocupações que chegam a 24 em duas semanas. Não
se tratou, portanto, de um movimento “espontâneo” – apesar de ter estourado
além das expectativas iniciais de forma não planejada.
A partir
daí os acontecimentos se multiplicam e demandariam um texto à parte. Interessa
aqui estabelecer que alguns elementos foram fundamentais para que as ocupações
ocorressem: 1) a forma autônoma e horizontal de organização, incipientemente
(mas apenas no momento em que esteve) ligada aos locais de estudo; 2) a decisão
pela ação direta que partiu do setor mais combativo do movimento, os
secundaristas, enquanto os professores vacilavam; 3) o apreço pela pluralidade
política que permitiu a criação de espaços comuns de ação e debate – que só
foram operacionais a partir da forma de organização e de um interesse comum.
B) O
Estado na ação direta contra as ocupações
Depois de repetidas derrotas judiciais e políticas e vendo que a tática do cansaço não iria surtir efeito, o governo fugiu do roteiro. Inspirado também no exemplo de São Paulo, em que o governo estimulou o “movimento” Devolve Minha Escola, surgiu o movimento Pais Pela Educação – GO. Esse movimento não só emulou o nome (COISA-GO) como também a estratégia de capilarização das ocupações: grupos dewhatsapp locais e páginas foram criadas para mobilizar em cada escola: Desocupa Castelo Branco,Desocupa Anápolis, Desocupe Ismael entre inúmeras outras páginas.
O objetivo
desse movimento era inicialmente criar um clima no qual as comunidades
desaprovassem as ocupações — o que facilitaria uma reintegração judicial — e
que aprovassem as Organizações Sociais (OSs) — dificultando resistências
posteriores. Eles começaram a realizar manifestações nas portas das escolas,
com o auxílio da estrutura oficial de comunicação dos grupos gestores e dos
professores contrários às ocupações.
Pouco
antes, e durante esse processo, a Secretaria de Educação começou a realizar
reuniões com os grupos gestores de todas as escolas ocupadas e depois com os
trabalhadores, especialmente o professorado, dessas escolas. Essas reuniões
serviam para difundir boatos sobre o iminente fechamento e militarização, caso
as escolas continuassem ocupadas, e para garantir a lealdade dos poucos
diretores que tinham posição mais ambígua frente ao movimento. Além de ameaçar
com corte de ponto e do bônus que era dado aos professores por assiduidade.
Feita essa
articulação prévia, começou a pressão nas ocupações uma semana antes do início
das aulas. Começava assim o aprendizado mais doloroso desse ensaio de poder
popular nas escolas. O Colégio Ismael Silva de Jesus, onde ocorreu a
desocupação mais violenta, acabou sendo a primeira tentativa bem sucedida e o
paradigma da mobilização realizada pelo Estado.
Quem
encampava a mobilização de maneira mais incisiva, quem foram as peças-chave
para a desocupação?
O diretor
tinha se mostrado simpático ao movimento no início, conhecia os alunos mais
mobilizados, sabia quem eram os apoiadores e de onde vinham e foi o principal
articulador não-oficial da pressão pela desocupação. O grupo gestor
(coordenadores, professores e administrativos puxa-saco) também encampava essa
articulação. O diretor chegou a fazer um vídeo pedindo
pela desocupação e ameaçando os pais com perda de matrícula e dos diplomas e
convocando uma manifestação.
Um
pretendente a conselheiro tutelar e “lideranças do bairro”, ou burocratas do
bairro, um deles vizinho da escola, todos vinculados ao PSDB, foram importantes
na pressão na porta da escola e na articulação do bairro contra a ocupação.
Eles mobilizavam três noções básicas: 1) “essa ocupação é coisa de gente da
universidade, nem é dessa escola ou desse bairro”; 2) “dentro dessa escola só
ficam os alunos vagabundos praticando imoralidades e atrapalhando os vizinhos”;
3) “a escola deveria estar funcionando, mas está trancada”. Eles também
conseguiram cooptar uma aluna que participou do início da ocupação e depois
passou a entregar informações internas para o movimento desocupa, fazer depoimentos que
confirmavam as acusações dessas lideranças, além de criar intrigas e boatos
dentro da escola ocupada para desestabilizá-la.
Esse grupo
não era tão grande — mas tinha o Estado a seu favor e algumas fragilidades do
movimento também.
Como
apontado por Fagner Enrique aqui,
as ocupações tinham muita dificuldade em envolver um número grande de
secundaristas e o público proletário das escolas. Não foi por falta de vontade:
várias panfletagens foram realizadas, algumas atividades abertas, protestos
locais também. A comunidade, salvo raras exceções, simplesmente não comparecia
e mantinha a costumeira passividade.
O cuidado
com o prédio e a vigilância tinham um custo em termos de tempo e energia
enormes para os secundaristas. Havia momentos em que mal se conseguia realizar
atividades internas, quanto mais as voltadas para a comunidade. Para aguentar o
processo de ocupação também era comum som alto e barulho na madrugada, o que
gerava insatisfação grande dos vizinhos. Dessa maneira, a escola ficava de fato
fechada e sua utilidade social para a comunidade ficava abstratamente colocada
no sucesso (possível e futuro) da luta contra as Organizações Sociais.
Essa
situação colocava o movimento em uma situação paradoxal. Enquanto, no início da
luta, o governador justificava a imposição do seu projeto das Organizações
Sociais nas escolas pela competência técnica e legal do seu plano de governo, o
movimento desocupa, de caráter para-estatal, argumentava que as medidas
judiciais que proibiam a desocupação valiam menos que a vontade popular da
comunidade de que as aulas fossem retomadas e, assim, que as questões técnicas
do projeto das OS eram menos importante que a escola funcionando.Já o movimento que gerou as ocupações, na posição de fragilidade em que se encontrava, ficava obrigado a reveter seu apelo inicial â ação direta e chamar advogados para explicar à comunidade que o Estado, na figura do judiciário, garantia a legalidade das ocupaçoes e que a coumunidade era ignorante quanto ao caráter das mudanças propostas pelo governo.
Um momento
emblemático que expressou essa situação foi uma manifestação contra a ocupação
do Ismael Silva de Jesus. Interpelada quanto à ilegalidade da desocupação, uma
“liderança comunitária” respondeu: “Esse juíz aí não sabe nada da minha escola.
E olha: assim como vocês pularam para ocupar, a gente também consegue pular pra tirar
vocês”. Depois disso, a ocupação chamou uma advogada e, assim que ela começou a
falar, a manifestação se esvaziou “porque esse negócio não vai dar em nada”.
Dias
depois, esses pais se organizaram em forma de milícia com a Polícia Militar e
expulsaram os ocupantes da escola ilegalmente e na base da porrada. Nem os pais
desses secundaristas nem nenhum vizinho se mobilizaram para defendê-los, apesar
de alguns terem comparecido a algumas atividades da ocupação. Depois disso
seguiu-se uma cascata de desocupações violentas ou negociadas sob a ameaça de
violência iminente. Muita delas com roteiros semelhantes — muitas violentas.
Três escolas, no entanto, escaparam do roteiro. Ao fazê-lo colocaram em prática
— por pouco tempo que seja, mas a eficácia foi atestada — algo muito maior em
potência do que um piquete para pressionar o governo a desistir de mais um
projeto.
C) Para
além do piquete — a autogestão como autodefesa social
Os secundaristas ensaiaram uma nova escola que atendesse de fato as demandas do público dessas escolas, a partir do trabalho voluntário de seus participantes, mantidos a partir da contribuição voluntária social pelo relevância social das suas atividades.
No Colégio
Cecília Meirelles, em Aparecida de Goiânia, o Movimento Desocupa chegou a
arrebentar o portão e invadir o colégio na tentativa de “persuadir” os
ocupantes a permitir um retorno à normalidade. Essa mobilização foi direcionada
por professores, mas com forte apoio e participação de secundaristas e pais da
escola. Com a presença de vários apoiadores externos da escola, uma proposta
que surgiu desse embate entre ocupantes e desocupas conseguiu apaziguar os
ânimos e impediu uma retirada violenta extra-legal da ocupação. Essa foi a
proposta dos aulões do ENEM.
Como disse
anteriormente, havia três “eixos discursivos” que justificavam a ação violenta
do Desocupa. Um certo conservadorismo moral, uma irritação com os transtornos
de um processo permanente de ocupação e a demanda de que a escola estivesse
aberta, ou seja, cumprisse uma função social. Enquanto as pretensões moralistas
e a irritação dos vizinhos fossem incontornáveis, a questão da função social da
escola acabou sendo o caminho que essa ocupação foi obrigada a enfrentar. Essa preocupação
era especialmente premente para os alunos do 3º ano, que estavam preocupados
com o ENEM daquele ano. Mal ou bem, essa função era cumprida pelo Estado e não
estava sendo cumprida pelas ocupações. Tornou-se preciso abrir as escolas,
fazê-las funcionar de algum modo — seja abrindo mão das ocupações ou criando
novos modos de resolver o problema.
Assim,
secundaristas e apoiadores formularam um projeto de aulões preparatórios para a
prova, utilizando da ampla legitimidade de que gozavam na cidade para obter
voluntários para dar as aulas. Esses aulões funcionaram para apaziguar as
principais tensões, mesmo depois do decreto de reintegração de posse. E
funcionavam de uma forma interessante: sem presença obrigatória, em formatos
não tradicionais, conteúdos definidos de forma coletiva, rompendo com todos os
padrões repressivos e “disciplinantes” de uma escola, apesar de manter uma de
suas funções.
Essa
escola, que funcionava de acordo com as determinações de uma, digamos, lei dos
índices, com o cumprimento de metas estabelecidas para formação de uma força de
trabalho subserviente, se utilizando da organização hierárquica do trabalho e
para atender interesses da gestão da Secretaria de Educação, mudou sua lei de
funcionamento. Passou a funcionar de acordo com a lei do social, ou seja,
realizar suas atividades formativas-educativas para se legitimar socialmente
junto ao público consumidor da escola, ter utilidade frente a ele para
conseguir se contrapor ao poder estatal. Apesar de atender a uma demanda externa
— que era o ENEM — os critérios para atender essa demanda mudaram
completamente. Não se pode pedir de uma
escola que ela vá formar pessoas desconectadas das demandas da sociedade em que
vive — mas ela pode certamente fazê-lo de maneira que contribua para o
fortalecimento de relações alternativas às atuais relações de produção. Uma escola a serviço dos trabalhadores
— não os que projetamos ou idealizamos, mas os atuais trabalhadores que
aprendem a conquistar o que precisam a partir da sua própria força.
Aí se
consumaram algumas rupturas decisivas: o protagonismo secundarista já não
estava mais em questão, e sim o protagonismo dos sujeitos da escola, a defesa
da propriedade do prédio deixou de ser exclusivamente pela segurança interna e
passou a apostar na legitimidade popular da sua gestão. O significativo é que
se conseguiu fazer com que essas atividades orientadas por esses critérios
fossem a principal de uma grande escola, e não um cursinho acessório de alguma
faculdade, por exemplo. Essa diferença é significativa e diferencia essa
experiência da tradição dos “cursinhos populares”. Apesar de ter durado pouco
mais de uma semana, foi uma experiência que comprova sua importância pelo fato
do Estado precisar ter mudado sua estratégia e retomar a utilização da polícia
e do judiciário para destruir essas relações incipientes — não foi mais
possível mobilizar secundaristas e professores contra seus colegas.
D)Algumas
conclusões provisórias
As ocupações seguiram de certa maneira uma dinâmica de revolta popular do transporte — um grupo pequeno planejou uma ação sem a pretensão de controlar os seus resultados além da sua possível expansão para além do controle, de maneira a tentar forçar os governantes a recuarem com uma medida. O fato de se tratarem de locais de trabalho, meios de produção concretos que eram tomados por meses, e principalmente o conflito instigado entre comunidades e Estado permitiram que se fosse para além de vislumbrar o possível e começar a construí-lo. Dificilmente os estudantes esgotados, em número pequeno diante do público das escolas, poderiam planejar e aplicar isso sem uma necessidade imperiosa imposta pelos acontecimentos.
Onde não
se tentou construir algo possível, o que ocorreu foi uma derrota mais ou menos
negociada — não apenas diante da força da polícia, mas diante de um reforço da
legitimidade do Estado por meio da mobilização dentro da ordem. Foi o caso de
colégios como o Pedro Gomes, hegemonizado pela União da Juventude Socialista
(UJS), e outros colégios que tinham participação de partidos que abriram mão da
ocupação em troca da promessa das diretorias de que poderiam criar grêmios
estudantis — e, veja bem, muitos até hoje não conseguiram apesar dessa
promessa. Mesmo onde houve resistência forte, intimidando possíveis violências,
mas não havia disposição para superar uma concepção do piquete em que nada
funciona, a coisa ficou insustentável em pouco tempo.
Esse texto
pode ser útil para as ocupações que hoje pipocam no Ceará, no Rio de Janeiro e
novamente em São Paulo
— onde vemos florescerem movimentos de desocupação usando de uma fórmula muito
similar à que foi bem sucedida em
Goiás. A tática da escola fechada é uma que eles aprenderam a
enquadrar — é preciso fazer da escola algo útil para a comunidade que a
utiliza, por mais que isso implique em diversos riscos. Não abrir a escola
também implicou em riscos — muito graves, por sinal.
Por outro
lado, também pode ser útil para o movimento que ressurge contra as Organizações
Sociais em Goiás. Que
alternativa temos para enfrentar esse projeto — para além dos questionamentos
legais, da incorporação da luta pelo Ministério Público, dos questionamentos
morais? A alternativa, penso eu, vai na mesma direção que esse vislumbre
apontado no Cecília Meirelles — práticas formativas, autônomas, desvinculadas
do Estado e criadas em oposição, em confronto com as direções e professores
autoritários — seja com a tática da ocupação ou por meio das lutas que ocorrem
no cotidiano da escola, nos corredores, nos conflitos das salas de aula, nos
conflitos que ocorrem por conta da escola fechada nos fins de semana para a
comunidade, entre vários exemplos.
Sem essa
base de práticas alternativas, reais, é muito difícil que consigamos uma
mudança radical na educação diante de uma situação de austeridade — o que
significa que a incorporação do movimento em apenas tornar o projeto das
Organizações Sociais mais eficiente, melhor construído legal e tecnicamente,
será inevitável.
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