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A resignação, a caridade, a avareza e o ciclo do castigo divino na literatura popular

Paiva Neves
 
A resignação, a caridade, a avareza e o ciclo do castigo divino na literatura popular.
Por Paiva Neves -Cordelista e poeta.

A literatura de cordel tem sido o foco de monografias, teses e debates na academia, possibilitando dessa forma, que estudantes, professores e a comunidade em geral apropiem-se desse saber secular que a cultura popular oral e escrita propicia. O problema, é que geralmente ao se debruçarem sobre o leito fértil e farto onde repousa essa literatura, que é viva e atraente, dirigem suas atenções para os folhetos, tendo como foco quase que exclusivamente a exposição em cordinhas ou cordéis, à forma tradicional e rústica de impressão com xilogravuras nas capas e os temas jocosos.

Hora, essa modalidade de venda de folhetos pendurados em cordões nunca foi praticada no Brasil. Os folhetos, quando vendidos em feiras, eram expostos em panos estendidos ao chão ou em malas; a impressão era rústica, não por opção, mas devido os recursos tecnológicos, para uma impressão barata, que o parque gráfico brasileiro permitia à época; já a xilogravura só passa a ser usada nas capas dos folhetos a partir dos anos 50. A capa mais usada pelos editores, e que perdurou até final dos anos 70, era a zincogravura, que nada mais é do que clichês de filmes com fotos de artistas de Hollywood e os temas jocosos que representam um ciclo denominado de gracejo. Focalizar a venda em cordinhas, temáticas engraçadas e capa com xilogravura, eu diria, é uma visão além de limitada, preconceituosa com a poesia popular e esconde o verdadeiro tesouro da sabedoria dos povos, dos ensinamentos e por que não dizer da história, do pensamento e da filosofia imperante em um tempo histórico presente da literatura popular em versos.

Os folhetos são muito mais do que jocosidade, literatura de entretenimento e folclore. Os folhetos de cordel, até a segunda metade do século XX serviu de veículo de instrução das camadas mais pobres da população, entendendo “instrução”, não como um processo de conhecimento crítico da realidade e de si, ou acesso ao mundo letrado, mas tão somente uma “instrução” que permitia aos pobres, especialmente os do campo, absorver a ideologia dominante. O que interessava ao as oligarquias rurais e urbanas, e que ainda interessa, é que os pobres aprendessem tão somente o necessário para que absorvessem e reproduzissem a cultura, a tradição e o pensamento daqueles que os dominam. Assim, a literatura popular também conhecida como “romance”, foi varando as décadas, pulando os quintais dos séculos e sobrevive ainda hoje como uma forma de expressão onde o povo retransmitia e transmite seus saberes, fazia e faz suas críticas sociais através do gracejo e de personagens como João Grilo, Cancão de Fogo, Pedro Malazertes, Camonge e tantos outros anti-heróis do imaginário coletivo das massas. O “verso”, “folheto”, “romance” ou cordel, como é denominado na atualidade, foi essa via de mão dupla em que os poetas faziam suas críticas mas, também a classe dominante repassava para as classes populares sua forma de pensar, sua visão de mundo e sua ideologia como forma de manter seu poder hegemônico.
 
As histórias em forma de poesia, com rima e métrica, escritas ou cantadas por poetas populares e publicadas por pequenas tipografias em formato de folhetos que eram comercializados nas feiras livres é uma herança direta do trovadorismo da idade média. Muitas vezes personagens como dragões, príncipes e princesas, saltavam diretamente dos cenários dos castelos e palácios medievais para o árido Sertão nordestino. Essa poesia veio da oralidade da idade média, incorporou os contos tradicionais e na revolução industrial se introduziu nas tipografias onde são gestados os milhões de folhetinhos que eram lidos avidamente pelo povo.
Há que se destacar toda a carga ideológica que ele trás consigo de um período que foi fortemente marcado pelo conservadorismo e os dogmas religiosos. A igreja, e principalmente o catolicismo popular até meados do século XX, colocava em suas pregações a caridade e a resignação como as virtudes principais de um cristão, cabendo aos ricos a ato bondoso de uma esmola e aos pobres a aceitação do sofrimento, daí a afirmativa que aos pobres é garantido o reino do céu. A pessoa que praticava a caridade ia aos poucos conquistando uma vaguinha no paraíso. Hora, os pobres totalmente despossuídos de bens matérias, já que não tinham acesso à riqueza, já que esta mesmo sendo produzida por ele era integralmente apropriada pelos ricos, ficavam impossibilitados de praticarem a caridade, restando-lhes apenas como requisito para entrar no céu a humildade, a resignação, a passividade e o perdão.
Por outro lado havia uma contradição entre o pregado e o praticado, já que havia e há, a ameaça simbólica proferida por Jesus de que “é mais fácil um camelo entrar no fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino do céu”. Hora, a burguesia, classe dominante em ascendência, dominava realmente tudo, inclusive a igreja e esta, arranjou um jeitinho dos ricos entrarem no céu sem passar pelo difícil e penoso estado da miserabilidade. Esse jeitinho foi à prática da caridade, meio de tranquilizar a consciência dos ricos em relação à salvação e garantir de certa forma a passividade dos miseráveis. Ai ficou definido que aos caridosos era reservado um pedacinho do céu e aos avarentos eram reservadas pesadas punições, como por exemplo, a pobreza. Mesmo assim, após o castigo divino havendo arrependimento era garantido ao rico uma entrada triunfal no portão celestial.
A literatura de cordel, como um produto do seu tempo, foi um dos veículos de comunicação que reproduziu essa ideologia. Para exemplificar, cito aqui quatro ótimos textos de cordel que se enquadram nessa ótica, sendo três clássicos e um contemporâneo. São eles: “A vida de Pedro Cem” e a “A órfã” de Leandro Gomes de Barros, “O capitão do navio”, de Severino Piruá de Lima, todos do final do século XlX e, seguindo a tradição, “Rosa Alice e o velho Gondim” de autoria do poeta Alberto Porfírio, falecido em 2009.
O primeiro e mais famosos dos quatro, “A vida de Pedro Cem” conta a história de um rico e próspero português. Tudo ele possuía de centenas: cem contos de Réis depositados em cada banco do mundo, cem fazendas de trigo, cem fazendas de gado leiteiro, cem prédios alugados em cada país, cem currais de peixes, cem navios nos mares, cem fábricas de tear, cem fábricas de vinho, cem hotéis, cem padarias e até alfaiataria ele tinha de cem. O poeta de Pombal, nos versos iniciais, o descreve assim: “Pedro Cem era o mais rico/que nasceu em Portugal/sua fama enchia o mundo/seu nome andava em geral/não casou-se com rainha/por não ter sangue real”.
Pedro Cem, apesar de rico, deixava de cumprir as orientações divinas, não praticando caridade. Era avarento “até dizer chega”. Sua fama de ruim espalhava-se por todo o território português. Era sabido por todos que Pedro era incapaz de dar uma moedinha, água ou comida a quem tinha fome ou sede. Certo dia, andando pela rua topou com uma pobre moça, esfomeada e quase nua a lhe pedir uma esmola. Ele, além de não dá a esmola, ainda a destratou. À noite, ao dormir, sonhou com um rapaz que lhe indagava o que tinha feito da vida e o reprimia pela sua avareza. Dizia-lhe o moço: “Que tens feito do dinheiro,/que me tomaste emprestado?/Meu Senhor manda saber/em que o tens empregado?/ E por qual razão não cumpre/as ordens que ele tem dado?”. Era um anjo do Senhor que vinha cobrar-lhe a dívida da fortuna adquirida e o pagamento era a prática da caridade para com os pobres. Como Pedro Cem, apesar do aviso divino, por meio de sonho, não mudou o comportamento mesquinho e ainda fez desdenha, foi castigado, de forma que, no espaço temporal de uma semana, o avarento perdeu todos os seus bens e ficou pobre de esmola, repetindo pelas ruas de Lisboa: “Uma esmola a Pedro Cem/que já foi capitalista/ontem teve, hoje não tem/a quem já neguei esmola/hoje a mim nega também.”.
Outro romance, também de autoria de Leandro Gomes de Barros narra à história de uma pobre e desprotegida órfã que vai pedir um prato de comida na casa de um ricaço. Este, como era muito avarento e pouco afeito a conceder qualquer ajuda aos pobres, coloca a pobre menina dentro da jaula do seu feroz cachorro, na certeza que este a estraçalharia.
Na manhã do dia seguinte, ao ir até a jaula para ver a carnificina, atônito, ver a menina dormindo tranquilamente, tendo o corpo do cachorro como travesseiro e, percebe ainda que ha um forte laço de afetividade da menina com o cão. Há um dito popular que diz: “Deus protege as crianças e os bêbados”, por certo a mão divina protegeu a órfã, pois o cachorro não a devorou, não tocou em um fio de cabelo seu e ainda tornou-se seu amigo a protegendo naquela noite do frio de da fome, já que cedera sua alimentação para que ela saciasse a fome e com seus pelos agasalhou o corpinho frágil.
Tomado pela cólera, o ricaço espulsa os dois, menina e cachorro da sua propriedade. A menina e o cão vão morar na floresta. O tempo passa, ela cresce e torna-se uma bela jovem e o ricaço cai em desgraça e vai viver de esmolas até que certo dia, muito debilitado se perde na mata, com fome e frio desmaia e é resgatado pelo cachorro, que reconhece o antigo dono e, também tocado pela compaixão o arrasta até a órfã. A moça o reconhece, o perdoa e trata de sua enfermidade.
Lembro-me de uma anedota que escutava quando criança que falava de um pescador que escutava uma voz perguntando se ele queria enricar. Aconselhado pela mulher ele responde afirmativamente e a piada termina com a voz dizendo: - Então vai trabalhar! O romance de cordel “O capitão do navio” de autoria de Severino Piruá de Lima começa com um rico fazendeiro, que toda tarde, em certo local, escuta uma misteriosa voz perguntar se ele quer viver feliz na mocidade ou na velhice. Foi se aconselhar com a mulher e esta o aconselhou escolher a felicidade na velhice.
Ele segue o conselho da esposa e logo depois as coisas começam a ficar ruins. Em poucos dias perde todos os bens, inclusive a casa de moradia. A esposa, que para ajudar o marido, lavava roupas, é raptada por um capitão de um navio. O marido, após muito esperar pela volta da mulher, sai com os dois filhos pequenos para procurá-la. No percurso depara-se com o rio onde a mulher fora raptada e para atravessá-lo, como não pode levar as duas crianças de uma vez, deixa uma em uma margem e passa a outra. Quando volta para pegar a primeira, esta tem desaparecido. Desesperado retorna para a outra margem onde deixara o outro filho e este também desaparece. Dessa forma a família, antes feliz, agora se encontra separada e na extrema pobreza. O enredo difere dos dois primeiros já que em “O capitão do navio” não temos o rico avarento castigado pela mão divina, porem temos a similaridade da presença do anjo, não em sonho como em “A vida de Pedro Cem” ou o destino agindo “certo por linhas tortas” como acontece em a “A órfã”, porem dessa vez o divino age diretamente através da voz misteriosa. No final, a família se reencontra. Os dois filhos já rapazes, libertam a mãe, e pai que havia conquistado um reinado e agora é rei os transformam em rainha e príncipes e vivem felizes até o final de suas vidas.
O quarto “romance” que cito acima “Rosa Alice e o velho Gondim” é um belíssimo texto do mestre Alberto Porfírio que tem como cenário uma seca terrível em algum local do Nordeste em finais do século dezenove. Rosa Alice vive com o marido e a filha o drama da seca. Para não morrerem de fome e sede abandonam a casa em que moravam e, como aves de arribação migram para um destino incerto. Na travessia de uma serra, mãe e filha ficam protegidas numa gruta em quanto o pai sai à procura de alimento e é comido por uma onça. Sozinhas, mãe e filha continuam a penosa caminhada. Não mais resistindo à fome, com a filha agonizando nos braços, a mulher chega a uma fazenda onde a estiagem ainda não castigara tanto e pode-se ainda encontrar farinha, rapadura, queijo e carne no depósito, um pouco de pasto e um resto de água no poço para matar a sede de homens e bichos. Pede água. Pede comida. O velho Gondim, dono da fazenda, para evitar que mais bocas consumam seus viveres as expulsa a chicotadas, o que leva a morte a pequena menina. Rosa Alice é encontrada quase morta por um rico e caridoso fazendeiro que a leva para sua casa.
Algum tempo passa, Rosa Alice termina casando com pai desse fazendeiro que também é muito rico e viúvo e o Velho Godim, com o prolongamento da estiagem perde tudo o que tem e para sobreviver sai de porta em porta pedindo esmolas. Muito cansado e doente chega à fazenda de Rosa Alice, mas sem forças desmaia, quando retorna está sendo tratado pela mulher a quem negara água, comida e ainda por cima a chicoteou levando a óbito sua pequena filha.
Esses “romances” são textos de cordéis que representam bem esse ciclo. Neles, está bem nítida a presença das virtudes morais do catolicismo dos séculos XVIII e XIX e do poder econômico burguês do século XVIII e XIX. Em “Pedro Cem”, em “A órfã” e em “Rosa Alice” vemos personagens marcantes, de características bem delineadas, chegando mesmo ao caricato. O mal, a avareza, as sovinices estão encarnadas nos ricos que desdenham da divindade e não reconhecem nesse poder divino o progresso de seus desenvolvimentos econômicos e por isso são castigados. De outro lado têm as personagens humildes dos pobres que representam a bondade, o perdão para quem os maltrata e oprime e a resignação com o sofrimento, exatamente como pregava a igreja desse período. Nesses três romances, no final, as pobres mulheres que foram humilhadas são recompensadas pelo comportamento de humildade tornando-se ricas, venturosas ou santas, como no caso da órfã. Os vilões ao serem castigados caem na mendicância e mortos de fome e doentes do corpo e da alma terminam sendo socorridos por suas vítimas, que os perdoam, provocando nestes uma cartase que leva ao arrependimento de suas maldades terrenas, sendo, assim, purificados dos pecados e alçados a vida eterna.
A literatura de cordel fiel há seu tempo, representa em seus textos clássicos esse ciclo. Dessa forma nossos folhetos alem de leitura para divertir é também história. É a alma do povo estampada nos versos dos poetas, denunciando, conscientizando e divertindo. Até a primeira metade do século XX textos como os citados acima, tinham a missão de dominar ideologicamente os oprimidos, repassando valores que incutiam nas pessoas o medo, o respeito e a ideia da vontade divina determinando a vida material das pessoas. Hoje, esses textos, além de nos mostrar com nitidez as desigualdades, os preconceitos e as estruturas sociais de dominação, nos fazem refletir sobre a nossa condição de vida, além de serem clássicos e merecerem sempre uma releitura, tanto pelo conteúdo histórico, como pela maestria da pena dos poetas.

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