Teses pelo fim do Sistema de Gêneros
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Teses pelo fim
do Sistema de Gêneros
Ilana Amaral, militante do
coletivo "contra-a-corrente".
Esta é a primeira versão –
a ser ainda discutida e aprimorada com outras companheiras –
de um conjunto de teses a ser levado, como contribuição ao
debate, ao Seminário Internacional Sobre Gênero, a ser
realizado em San Cristobal de las Casas, Chiapas, México, em
maio/junho deste ano, organizado por um grupo de movimentos que
participa das iniciativas da AGP (Ação Global dos Povos). Neste
Seminário, deverá ser elaborada uma proposta de novo Manifesto
da AGP, a ser apresentada na Conferência Mundial da Ação
Global dos Povos, que realizar-se-á no próximo ano, em algum
país – a ser definido – da América Latina.
1.
Partimos aqui do mercado mundial.
Toda a vida humana foi, em nosso tempo, submetida ao domínio da
economia através do desenvolvimento histórico do sistema de
produção de valores. Esse não é apenas um fato econômico
da vida moderna. Não é um dado a mais da realidade, ele é em
si, a submissão mesma da vida, toda ela, à lógica da
produção mercantil, a submissão da vida à economia. Assim, o
mercado mundial, através dos seus agentes (os monopólios, que
concentram a quase totalidade da riqueza humana em nossos dias)
submete todas as dimensões da existência humana à sua lógica
cega. Inclusão ou exclusão do mercado: eis a alternativa
perversa dada nos marcos do mundo do tráfico mercantil. Isso
significa que mesmo aquelas esferas da vida que se nos apresentam
como estando a "salvo" da "contaminação" da
esfera social, a esfera da individualidade, os mais íntimos
recônditos da alma humana, o universo do desejo, a esfera dos
afetos, foram inteiramente submetidas à lógica universal da
produção mercantil. Não se trata apenas de dizer que só temos
acesso à satisfação das nossas necessidades mediante o
dinheiro, mas mais radicalmente, de que as nossas necessidades e
os nossos desejos são, eles mesmos, produzidos a partir da
lógica da mercantilização. Não se trata, assim, ao falar do
mercado mundial, de falar de uma dimensão da vida, senão
de uma dimensão que se estendeu e contaminou, com as suas
determinações, toda a existência humana. Trata-se, assim, de
uma completa economização da vida, da redução da vida à
economia.
2.
O mercado é a supressão radical
do indivíduo. A característica fundamental do sistema produtor
de mercadorias é a submissão da individualidade à
universalidade do trabalho abstrato. Isso significa que
enquanto sou trabalhadora, proprietári@ - ou negativamente, uma
desempregad@, uma despossuíd@ (é sempre desse modo que um
indivíduo existe para e no mercado) não sou um indivíduo, ou
seja, não sou alguém dotad@ de existência, sentimentos,
aspirações, desejos próprios e únicos, mas sou precisamente um
a mais de uma espécie, ou seja, um trabalhador, um
proprietário, um desempregado. Não há, aqui,
indivíduos, pois a supressão de toda a individualidade é o
dado primeiro da universalização do trabalho abstrato, do
trabalho produtor de mercadorias. Nele, o que se realiza é
precisamente o oposto da singularidade, da concretude, da
individualidade, na medida em que o trabalho se apresenta não
como "este trabalho", como um trabalho concreto,
mas na medida em que pode ser intercambiado com quaisquer outros
trabalhos, mediante o intercâmbio das mercadorias. Ou seja, não
conto enquanto sou produtor@ desse ou daquele produto, enquanto
faço isso ou aquilo, mas conto exatamente na medida em que, ao
receber uma determinada quantidade de dinheiro em troca da minha
força de trabalho, posso, por minha vez, trocar esse dinheiro
por outros produtos, que satisfarão as minhas necessidades.
Assim, não importa, no fundo, aquilo que eu faço, ou o que
desejo, apenas o próprio fato de que tudo por ser trocado por
tudo, ou seja, de que todas as coisas se apresentam, a despeito
da sua diferença, como iguais, na medida em que, numa
determinada quantidade(que é dada pelo tempo de fabricação de
cada coisa) tudo é igualado, tudo pode ser trocado por tudo. O
que ocorre aqui, portanto, é a desaparição do indivíduo e da
diferença, sob o peso do domínio das relações mercantis. O
mercado como dado que permeia hoje toda a vida humana - mesmo que
negativamente, com @s excluíd@s do mundo do trabalho e do
consumo - torna universal essa desaparição.
3.
A negação da individualidade que
se realiza sob o domínio do mercado se apresenta,
contraditoriamente, como a aparição do indivíduo. Justo ali
onde o indivíduo real desaparece radicalmente numa existência
doravante determinada pelo trabalho abstrato, é que em
seu lugar encontramos o discurso do indivíduo, a idéia de uma
existência autônoma, os Direitos como direitos individuais. É
preciso, uma vez que a universalidade da mercadoria se apresenta,
a despeito da negação que realiza, através dos indivíduos -
embora aqui reduzidos à condição de meros produtores de
mercadorias - que o simulacro da diferença tome o lugar da
diferença negada. Se nos primórdios do mercado mundial essa
aparição se apresentava na forma abstrata dos Direitos
Universais, no capitalismo em crise permanente do final do
século XX ele se apresenta como tentativa de inclusão das
"minorias sociais" - em cujo interior se manifestaria a
individualidade - na esfera do mercado. Toda a diferença é
imediatamente, sob a ordem mercantil, reconduzida à identidade
abstrata dos "produtores" e "consumidores".
4.
É assim que os movimentos sociais
que manifestam a explosão da reivindicação da diferença são
continuamente integrados na ordem mercantil: Mulheres -
trabalhadoras, consumidoras, nicho de mercado que se abre com a
explosão da luta em torno das reivindicações em torno do
direito feminino; GLS - consumidores, nicho de mercado, e mercado
potencialmente abundante, dizem os analistas, nicho de alta
rentabilidade, de alta expectativa de consumo. Negros -
consumidores, nicho de mercado: "Negro classe A também
consome". O "politicamente correto" é a
expressão mais visível, na esfera dos direitos, da tentativa de
captura, pela lógica mercantil, da explosão da diferença:
todas as formas de discriminação são passíveis da
intervenção de um advogado litigante em busca de
indenizações. Aqui não estamos, contudo, em face da
diferença. Estamos em face do cru simulacro. A estetização que
transforma movimentos autônomos de reivindicação do direito à
diferença em "nichos de mercado" é apenas a sua face
mais visível: "um novo modo de ser mulher",
"Negro é lindo"... assim, os mass media,
incorporam, cotidianamente, os apelos da diferença como apelos
ao consumo: a diferença é eliminada enquanto diferença.
Trata-se da inclusão social do diferente pelo e no
mercado. Redução, portanto, da diferença, à identidade
abstrata de "consumidores."
5.
Aqui estamos, ainda e sempre, na
esfera do mercado, na esfera da abstração. As mulheres de carne
e osso, maiores vítimas da eliminação definitiva, estrutural e
cada vez mais radical de amplas parcelas da humanidade da esfera
do trabalho e com ele da esfera do consumo, vítimas
preferenciais da miséria e da violência e os seus movimentos
autônomos de luta contra a opressão, os homossexuais vítimas
da violência cotidiana nos grandes centros, sobretudo aqueles
obrigados à prostituição - submissão do desejo à forma
abstrata do valor, à mercantilização - os negros, vítimas
preferenciais da violência policial e do desemprego, não são
aqueles representados na realidade estetizada dos "nichos de
mercado". O "indivíduo" portador de direitos é
nada mais que um mero vazio, o homem reduzido a uma única
dimensão é, pois, o exato oposto da individualidade como sede
da diferença..
6.
Como dado primeiro da realidade
mundial, é do mercado que partimos. Mas ele é apenas o nosso
ponto de partida, enquanto é aquilo a que foi reduzida a vida
humana. Mas partimos em direção a um mais-além. É no sentido
da superação do mercado mundial e da abstração que o
constitui, da superação do trabalho abstrato e da
economização da vida inteira que nos dirigimos. Destruir o
mercado é condição sine qua da constituição da
individualidade, da aparição real das diferenças negadas pela
universalização da forma mercadoria. Se não nos contentamos em
ser portador@s (ou em nossa maioria, nas condições do
capitalismo atual, não-portador@s) de mercadorias, é preciso
pôr – no lugar das relações mediadas pelo dinheiro –
relações diretas entre os indivíduos. Sem compreender a
centralidade da necessidade da destruição do mercado, não é
possível sequer falar de vida: estaremos sempre na esfera do
simulacro, na esfera da pura representação da vida.
7.
Se a negação do mercado é
condição da individualidade, da diferença, é necessário,
entretanto, que explicitemos que uma crítica radical do mercado
é exatamente crítica da desaparição da diferença. Tal
desaparição, contudo, embora ganhe uma centralidade e uma
radicalidade inteiramente novas sob o domínio do trabalho
abstrato, não se inicia, historicamente, com o domínio das
relações mercantis. O desempregado que espanca sua mulher, que
mata o homossexual na rua ou que espanca um negro até a morte
talvez se reconheça num projeto de superação do mercado, se
este se apresenta a ele simplesmente como a possibilidade de
satisfação das suas necessidades. A superação do mercado não
implica, entretanto, somente no "fim" da restrição à
satisfação das necessidades mas é condição da emergência da
individualidade e da diferença radicais. Como tal, ela implica,
necessariamente, o fim de toda e qualquer identidade ou
particularismo que elimine a diferença, ou seja, a condição da
superação do mercado é o estabelecimento de relações
diretas, anti-hierárquicas, não representativas entre os
indivíduos o que supõe, evidentemente, a eliminação de toda e
qualquer hierarquização e forma de domínio. No lugar das
relações mercantis, portanto, ou estarão relações diretas e
horizontais ou estaremos ainda na esfera da negação da
individualidade, na esfera do domínio.
8.
A negação da diferença não se
inicia com as relações mercantis. Ela é obra da invenção da
Cultura. Ela é, assim, obra humana. Como obra humana, ela é
conatural, historicamente, ao patriarcado. O sistema de gêneros
é ao mesmo tempo fruto e condição da usurpação primeira da
diferença. O que caracteriza a humanidade do homem é a cultura
- a linguagem, o trabalho. É na cultura que as condições
puramente naturais da espécie foram, do ponto de vista
histórico, alteradas, abolidas, mantidas e/ou aprofundadas. O
gênero, a etnia, a classe, enfim, todos os particularismos que
põe o fim da individualidade tem aí a sua origem. A natureza é
o dado primeiro com o qual nos confrontamos mas, e é isso mesmo
aquilo que caracteriza a aparição de um mundo humano, toda a
naturalidade é suspensa pela intervenção da cultura. Assim, o
desligamento da sexualidade da função puramente reprodutiva, a
construção do desejo - esse outro do instinto - a invenção
dos laços amorosos, são, todos eles, obra aberta pelo agir
próprio do homem. Nada, uma vez se distanciando das
determinações da natureza - façamos fogo, foi assim que se
representou a obra civilizatória, numa afirmação primeira da
distância que o opõe à animalidade - é mais
"puramente" natural no homem. Todas as construções
através das quais o homem cria o mundo humano carregam em si a
marca dessa ruptura.
9.
A instituição da diferença dos
orgãos reprodutores como móvel de identidade social e de
domínio são uma instituição humana. Se na natureza há machos
e fêmeas, só a espécie humana constitui gêneros. O gênero é
uma invenção histórica da humanidade, um modo de identidade,
de supressão da diferença que se origina numa dada
diferença/identidade naturais, a amplifica e institui a partir
dela todo um sistema hierárquico e classificatório. O gênero
é um dos modos, modo primeiro, do ponto de vista histórico, do
sistema e no sistema não há diferença. Não há, na natureza,
homens e mulheres. Essa é uma construção social, uma
construção humana. Que todo o arcabouço da nossa civilização
se tenha constituído a partir dessa "diferença" de
gêneros, parece reforçar a tese de uma naturalidade de tal
classificação.Com efeito, se fêmea e macho são
determinações biológicas presentes também em outras espécies
parece legítimo supor que isso a que chamamos de natureza
autorize essa classificação.
O que as culturas - as que se
impuseram ao longo da história da humanidade como vencedoras -
inventaram, ao longo de suas trajetórias, foi a supressão das
diferenças radicais entre os indivíduos a partir do gênero, da
etnia, da classe. É, assim, a civilização que suprime a
individualidade com a invenção dos sistemas classificatórios.
Essa não é, senão, uma crença constituída historicamente. Um
determinado modo de "classificar as individualidades" a
partir de uma determinação natural. Nada impede, por exemplo,
que fossem outras as determinações biológicas que tivessem
dado origem a outros sistemas classificatórios possíveis. Se é
verdade que a individualidade é diferença radical, os
indivíduos temos, todos nós, uma série de características,
naturais ou não, todos elas passíveis de encontrar
"identidade" com outras individualidades sem, contudo,
que tal "identidade" (identificação, aliás, diz
melhor o que aqui se pretende, pelo caráter provisório que
implica) suprima a diferença originária. O gênero não é,
pois, um dado natural, mas um modo historicamente determinado de
classificar os indivíduos da espécie humana com base numa dada
identidade/diferença biológicas, apenas uma entre tantas
possíveis. Não se trata aqui, é evidente, de suprimir as
identificações biológicas como realmente existentes mas,
apenas, de sublinhar que tais identificações são dados
imediatamente naturais, e que cada uma das identificações
possíveis dadas na natureza é precisamente uma entre tantas. A
individualidade que somos supõe, precisamente, uma multidão de
identificações, todas elas igualmente possíveis, ou seja, o
fato de sermos irredutível diferença implica que somos sempre
essa combinação irredutível e única de identificações
possíveis. O que caracteriza a invenção do sistema de gêneros
não é, entretanto, o biológico propriamente dito, ao
contrário, é justamente a criação das representações
associadas às funções reprodutivas que transformam o macho e a
fêmea biológicos no Homem e na Mulher.
10.
É, contudo, dominante, a
apreensão dessa determinação de gênero como uma
determinação "natural". Mas a natureza não é - já
foi dito - um modelo para a compreensão daquele que se
caracteriza por ser um inventor de novas naturezas a partir de
si. O que é próprio do homem é exatamente a suspensão de todo
dado natural pela invenção da cultura. Se a tradição , se a
herança patriarcal é já um fundamento de tal naturalização
do sistema de gêneros, a introdução das relações mercantis,
mais que reforçar a naturalização, aprofunda, amplia e
universaliza tal naturalização à medida em que submete a
naturalidade do sistema de gêneros à naturalização das
relações sociais em sua totalidade. A naturalização das
relações de gênero é agora momento da naturalização do
humano enquanto tal que se realiza sob a forma-mercadoria. Se as
relações sociais aparecem naturalizadas sob o domínio do
trabalho abstrato, as relações de gênero, momento essencial
das relações entre os indivíduos aparecem aqui, também elas,
como relações universais e naturais. Assim, a introdução das
relações mercantis, a constituição do trabalho como trabalho
abstrato - radicaliza, aprofunda e submete tal
"naturalização" do gênero à naturalização mesma
da propriedade e das relações mercantis: é dado como natural o
fato de doravante os indivíduos não mais se relacionarem
diretamente mas somente mediante as trocas mercantis. A
desaparição integral do indivíduo aprofunda, assim, a
desaparição primeira dada já na invenção do sistema de
gêneros.
11.
O Gênero - como todo sistema
classificatório - implicou, historicamente, uma classificação,
uma normatização e uma hierarquização. É a partir da
identidade de gênero que se instituem as representações
próprias à "natureza" do Masculino e do Feminino: o
macho caçador- provedor, a fêmea reprodutora; o masculino,
ativo e o feminino, receptivo. Tais representações, são,
evidentemente, inteiramente arbitrárias e contingentes.
Naturalmente, tudo aquilo que não se encontra nesse esquema de
representação cai, no interior do sistema, com todas as
gradações e as variações possíveis, no registro do anormal,
do desviado, do patológico. A partir da identidade, a diferença
é situada como patololgia. É no sistema de gêneros que se
situa, histórica e logicamente, a origem não só da misoginia
mas também da homofobia. Evidentemente, como todo sistema, o de
Gêneros possui um princípio claro, um único príncipio do qual
o outro é negação: O Masculino, o pai, foi o primado a partir
do qual o feminino apareceu como sendo da ordem do complemento.
É nessa relação de complementaridade que se radica, a um só
tempo, a subalternidade da mulher, a homofobia e mesmo a
determinação das relações amorosas como uma
"fusão", na qual desaparecem as individualidades.
12.
Há, contudo, no sistema de
gêneros tal como existiu historicamente, na multiplicidade de
suas configurações, uma permanência central: a
hierarquização dos papéis e o lugar de subalternidade do
Feminino. A invenção do Masculino e do Feminino é sistema e,
como tal, exclusão da diferença. Esse sistema teve, na
história, um nome bem determinado: Patriarcado. Na tradição
patriarcal a diferença é mulher. Se o princípio é o do
masculino, o "outro" aqui, o negado, o subalterno, é o
feminino. Toda a história humana, toda a cultura, no Ocidente e
no Oriente, é permeada pela construção real de relações
patriarcais de gênero como fundamento das representações -
míticas, religiosas, científicas, filosóficas - da
subalternidade do Feminino. É assim que um projeto de resgate da
individualidade não pode prescindir, como núcleo de sua
crítica da realidade, da crítica das relações patriarcais e
da subalternidade do feminino. Foi, do ponto de vista de sua
gênese histórica, o patriarcado que inaugurou o poder nas
relações humanas. A dominação de gênero é, assim,
historicamente, fundadora – anterior, portanto, à
dominação étnica, à dominação de classe. Esse é o
significado central da enunciação da tese 08 do sistema de
gêneros como princípio da eliminação da diferença.
13.
Trata-se, portanto, de considerar
que a luta pela constituição da individualidade implica,
necessária e fundamentalmente, a luta pela superação do
sistema de gêneros, na medida em que constituir um mundo fundado
na diferença, impõe a eliminação do sistema enquanto tal. Só
nesta perspectiva, pensamos, a diversidade, a diferença, poderá
se apresentar na sua radicalidade, a partir da superação das
identidades que abra espaço à emergência da diferença. Se as
relações sociais fundadas no trabalho abstrato dão uma face
inteiramente nova à dominação da mulher, implicando na sua
condição de "vítima sacrificial" preferencial da
crise da sociedade de mercado - através, num primeiro momento,
da sua inclusão no mercado e da dupla jornada de trabalho que
tal inclusão significou, através, na crise de mercado, da
exclusão violenta e preferencial dos postos de trabalho e de sua
inclusão no comércio extra-oficial de corpos, através da
violência sexual, da violência doméstica, da violência
simbólica cotidiana, da pauperização e, por outro lado,
implicam numa "masculinização" daquelas que ocupam
postos chave no mercado de trabalho, das executivas do capital,
de fato as relações mercantis não "inventam" essa
condição de subalternidade, mas a amplificam e potencializam:
se o mercado é negação da diferença, doravante, sob o
domínio da forma valor, só através do dinheiro é possível
"contornar" a subalternidade. Mas esse
"contorno" expressava radicalmente, desde os
primórdios da sociedade mercantil o fato incontornável da
subalternidade do feminino no sistema: função igual, salário
desigual. Tal continua sendo, de modo cada vez mais radicalizado,
o lugar do feminino na sociedade de mercado: a subalternidade,
cada vez mais radical.
14.
Se o sistema de gêneros não é
um dado natural, mas uma construção humana, isso não implica
que as representações do Masculino e do Feminino que ele
construiu não possuam a força de uma determinação da
natureza, ou seja, que a humanidade, depois de milênios de
dominação patriarcal, não tenha "naturalizado" tal
sistema e suas representações. É nessa medida que do Masculino
e do Feminino emergem, como um modo de organizar as nossas
existências individuais, representações que se nos apresentam
como naturais: Mulheres são amorosas, dóceis e sensíveis,
homens são determinados, agressivos, competitivos. Tais
representações, ainda que sejam verdades históricas no sentido
de que no horizonte das relações de gênero o Masculino e o
Feminino efetivamente se apresentaram, "em geral", a
partir de tais características, estas são e serão sempre
apenas representações historicamente situadas e portanto só
parcialmente verdadeiras - ou "verdadeiras" enquanto
mostram uma construção social histórica e determinada. Isso
significa não só que as representações em torno do masculino
e do feminino são variáveis historicamente, mas sobretudo que
no horizonte mesmo de sua validade, num momento histórico
determinado, há sempre o espaço de negação de tais
representações, porque no mundo da norma há sempre o lugar do
diferente, mesmo que numa situação de subalternidade. Assim é
que em todos os momentos do sistema, explodiram sempre conflitos
de individualidades ou grupos com os modos sociais de
representação dos papéis. Como representações historicamente
situadas, elas são, evidentemente, passíveis de
reestruturação - as últimas décadas, sobretudo, têm
observado uma "ampliação" do horizonte possível de
representações em torno do masculino e do Feminino,
ampliação, contudo, inteiramente presa, ainda e sempre, ao
sistema de gêneros enquanto tal, pois o sistema pode e precisa,
aliás, do diferente que confirma a necessidade da regra.
15.
Se no sistema a diferença é
negada e, finalmente, homens e mulheres vêem a sua
individualidade cindida nas representações do masculino e do
feminino, que gerações após gerações de homens e mulheres
sob o domínio patriarcal viram a sua individualidade negada,
desrespeitada, cerceada, isso não significa, em absoluto, que do
ponto de vista histórico tal processo seja simétrico. É
precisamente na assimetria das relações como relações de
poder que o sistema de gêneros se constitui e na medida em que o
feminino representou sempre o outro, a diferença - é essa a
fonte de toda a misoginia - é lícito, parece-nos, identificar
às representações historicamente ligadas ao feminino - ou
parte delas - a luta pela diferença enquanto tal. Se há um
lugar de subalternidade estabelecido pelo sistema de gêneros, é
no confronto com tal subalternidade, é na reivindicação do
lugar do outro negado, da diferença, que é possível encontrar
a ponte capaz de nos fazer dar o salto no abismo para além da
identidade. Se é verdade que no interior do sistema - e isso é
válido, pela mesma razão, para as outras articulações
sistemáticas como a de etnia e classe - constitui-se um
princípio e uma subalternidade, a saída do sistema, a negação
deve poder se localizar preferencialmente - embora no interior do
sistema todos sejamos igualmente negados como individualidade -
justo no âmbito do negado, na diferença. Isso significa que,
embora sendo negador de toda a individualidade, o sistema como
tal pesa sobremaneira sobre os ombros daquel@s que nos
encontramos no lugar de subalternidade. E significa também que a
luta pela construção de um mundo humano no qual a
individualidade possa, finalmente, se apresentar na sua
radicalidade, exige, necessariamente, que a situação de
opressão e violência à qual temos sido, por gerações e
gerações submetidas, seja por nós mesmas intransigentemente
denunciada, negada cotidianamente e radicalmente superada.
16.
Assim, se para que possamos
superar as relações mercantis, mediadas pelo dinheiro, é
necessário que construamos experiências de organização
autônomas, nas quais as relações mediadas sejam substituídas
por relações diretas onde sejam superados os princípios da
representação, ou seja, se é necessário basear as
organizações anti-capitalistas numa experiência cotidiana de
ruptura com a passividade e o mando/obediência característicos
da relações mercantis e do Estado que as representa, como forma
de construir desde já os contornos de uma sociabilidade na qual
a diferença é fundamento, do mesmo modo, e com igual
radicalidade, é preciso superar as determinações históricas
do sistema de gêneros - a misoginia e a homofobia - a partir da
própria experiência de luta contra as suas formas atuais.
Assim, se a experiência da construção de organizações
autônomas, ou seja, anti-hierárquicas e horizontais é
condição da superação das relações mercantis porque põe,
desde a experiência cotidiana a ruptura prática com a
mediação e a representação, é evidente que também no seio
das lutas que contestam a opressão de gênero - e que parte,
portanto, forçosamente da nossa situação presente, ou seja, do
gênero enquanto uma realidade plenamente vigente do ponto de
vista social - é necessário que superemos os limites do sistema
de gênero na nossa própria prática cotidiana. Ou seja,
trata-se de encontrar meios concretos de ao mesmo tempo em que
partimos da realidade da opressão Feminina e da homofobia,
destruirmos as representações históricas ligadas à idéia de
sistema enquanto tal. É necessário, pois, que a individualidade
e as relações diretas se manifestem na forma do combate
cotidiano e intransigente a todas as formas de misoginia e
homofobia sem que com isso, contudo, caiamos numa naturalização
do feminino, do masculino ou do homoerotismo. Trata-se, assim de
que procuremos experimentar, desde já, a ruptura com o sistema
de gêneros buscando incorporar a diferença e a individualidade
como o fundamento, embora negado na nossa condição atual,
daquilo que somos e do mundo que queremos construir como a nossa
morada.
Se a negação do sistema - como
foi dito acima, encontra o seu lugar privilegiado, quanto ao
sistema de gêneros, nas mulheres e homossexuais, pela condição
de subalternidade, que seja o combate à subalternidade submetido
ao combate mesmo à idéia do gênero enquanto tal, ou seja, que
o combate à subalternidade do feminino e à exclusão possa ir
à raiz do problema compreendendo que a crítica à situação de
opressão feminina ou contra a homofobia só se realiza, na
radicalidade, como crítica ao sistema de gêneros em sua
totalidade, ou seja, como crítica ao sistema enquanto tal.
Assim, é absolutamente necessário que busquemos, no interior
das experiências autônomas de combate ao mercado, realizar um
trabalho nuclearmente voltado ao combate à misoginia e à
homofobia como expressões radicais do sistema de gêneros no
mundo contemporâneo sem que, contudo, do ponto de vista de sua
forma mesma, tal trabalho aprofunde e consolide as
determinações do sistema mas, ao contrário, buscando
incorporar todos os indivíduos que se coloquem na perspectiva
desse combate, experimentando superar, assim, na própria forma
de nossa constituição como movimentos autônomos de recusa ao
sistema de gêneros, as suas determinações. Ousemos pois, como
nos sugere a palavra de ordem da convocação deste seminário,
quebrar as determinações do sistema. "Ni Hombres, Ni
Mujeres, sino TODO LO CONTRÁRIO!!!"
Notas:
- Indivíduo, tal como pensamos aqui, designa simplesmente a absoluta unicidade, a singularidade absoluta que faz dos homens entes radicalmente diversos entre si. Não é possível, dados os limites dessas teses, enfrentar aqui a complexa questão de fundamentar esse uso do conceito de indivíduo. Usamo-lo aqui na medida em que ele parece, na linguagem comum, traduzir exatamente a idéia de unicidade que aqui se quer sublinhar. Isso não significa, contudo, que não haja uma clara consciência do quão problemático é esse conceito, sobretudo quando consideramos a perspectiva central dessas teses, que é a de sublinhar a luta pela diferença. Seria, entretanto, necessária uma longa digressão - que não cabe nos limites dessas teses - para legitimar o uso que aqui fazemos dele. Não se trata, pois, de um uso acrítico do conceito, mas de "contornar" o problema, contentando-nos, provisoriamente, com o significado usual de indivíduo como o único, não como "um" de uma espécie.
- Não é à toa que a representação é o modo próprio de ser da vida social no mundo do tráfico mercantil: a esfera da política, a esfera da "coisa pública" compreendida como tarefa de especialistas, de uma parte destacada das individualidades, se apresenta aí e tem que se apresentar, como representação. A vida em comum não é, no mundo do tráfico, algo que nos diz respeito diretamente, ela deve ser coisa dos representantes. Os políticos tomam, na esfera do "público", o lugar do trabalho abstrato na esfera da economia: como o outro, usurpam o lugar do concreto, do real, e põe a sua representação. A representação na esfera da política é, assim, a extensão do princípio do simulacro presente na forma nuclear do mundo do tráfico mercantil: o trabalho na sua forma abstrata é representação universal real do trabalho concreto. Não há indivíduos e nem vontades, há cidadãos e representantes da vontade. Mas a vontade, já dizia o primeiro grande crítico da representação no mundo moderno, não pode ser representada, porque a vontade não se transfere.
- Não é aqui o momento, evidentemente, para tratar das relações do homem com a natureza e da sua feição historicamente destruidora. Não se trata, aqui, de uma valoração iluminista, progressista, das relações do homem com a natureza, mas do simples reconhecimento da cultura como aquilo que é próprio do invenção de si mesmo pelo homem. Que essa feição destruidora é a face das relações entre o homem e a natureza sobretudo a partir da constituição do capitalismo, é uma outra questão, certamente central para um projeto de superação do mercado, que extrapola, entretanto, os limites destas teses.
- Sistema aqui significa um processo real de eliminação da diferença a partir de certas particularidades. Tomando certos caracteres particulares que diferenciam alguns indivíduos entre si e ao mesmo tempo os identificam com outros, remetendo-os, assim, a uma totalidade, a individualidade é agora pensada não só como diferença, mas também como identidade. O sistema é, assim, o modo no qual, ao ser integrada numa totalidade, a individualidade é precisamente negada na sua irredutível diferença. Ao ser "parte" de uma totalidade, todo indivíduo é, ao menos em certo sentido, um a mais na totalidade. Trata-se aqui justamente do problema referido na nota 1. O sistema é aqui pensado, então, como um evento real e integral que é um fato da existência, da linguagem e do pensamento.
- É freqüente que encontremos, no seio do movimento feminista ou na abordagem da questão de gênero na literatura, uma tentativa de contrapor à tradição patriarcal uma natureza mulher, como a que encontramos na tese do Matrismo, período anterior à divisão patriarcal de poderes, que pretende resgatar uma natureza mulher anterior ao sistema de gêneros ou na apresentação de um princípio fêmea biológico, a tese de que os fetos seriam, todos, em princípio, femininos (cf. Badinter, E.). Essa operação, contudo, nos põe em face de uma transposição de um universo lingüístico, valorativo e classificatório que é justo a característica central do "sistema" transposta de modo inteiramente arbitrário para um universo marcado pela diferença, ou seja, pensa a partir do sistema - porque o feminino como princípio exige, como todo princípio, a complementaridade - para explicar relações que seriam exatamente da ordem da ausência do sistema, ou seja, da ordem da diferença, fazendo, assim, uma verdadeira metafísica do feminino. Perguntamo-nos, aqui, inclusive, não só pela validade de tal procedimento mas, também, pelo sentido da reivindicação de um "princípio Mulher"(cf. Morace, Sara), na medida em que a reivindicação do primado do feminino só inverte a ordem na hierarquia do sistema, reproduzindo o horror à diferença que todo sistema classificatório traduz e implica necessariamente.
- É evidente que a configuração do sistema de gêneros sofreu inúmeras alterações históricas - inclusive quanto ao aceitável e o inaceitável - ele observou, assim, quanto à norma e ao "desvio", várias formas possíveis ao longo da história humana. Entre os gregos, por exemplo, o sistema de gêneros não implicava homofobia, antes valorava positivamente, em função da absoluta misoginia, as relações entre "iguais". É absolutamente intraduzível nos limites destas teses e mesmo de uma extensa pesquisa antropológica a explicitação dessa multiplicidade de variações.
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