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Os desafios à política radical

 Independentemente do tamanho das dificuldades a serem enfrentadas, a recusa da resignação é sempre um primeiro e indispensável passo. Por Pedro Mauad

“Há uma grande desordem sob o céu, a situação é excelente.” Mao Tsé-Tung

A esquerda contemporânea, como bem percebido por Žižek, atravessa uma situação paradoxal: no século passado a esquerda sabia o que fazer, mas tinha de esperar pacientemente que as condições estivessem maduras para isso. Agora, não sabemos o que fazer diante das situações catastróficas que enfrentamos, mesmo as condições estando totalmente amadurecidas. É extremamente oportuno levarmos em conta o que disse István Mészàros: “Tempos de grande crise econômica sempre abrem uma brecha razoável da ordem estabelecida, que não tem mais êxito na distribuição de bens que servira como sua inquestionável justificativa. Tais brechas podem ser alargadas a serviço da restruturação social, ou de fato fechada por um prazo maior ou menor, no interesse da continuada sobrevivência do capital, dependendo das circunstâncias históricas gerais e da relação de forças na arena política e social.”


Se a crise do capitalismo nos coloca desafios à ação política, esta, por sua vez, poderia iniciar-se compreendendo que vivemos num capitalismo da crise. Se o processo de valorização do valor que gera o capital começa a revelar suas contradições,expor seus limites e exaurir os recursos humanos e naturais [1], a economia do capitalismo não faz mais do que transformar-se em economia capitalista de gestão da crise do capital – de forma a garantir a continuidade de seus [do capitalismo] imperativos. Ora, quem definha-se é o valor real, que busca abrigo nas entranhas da valorização fictícia, mas o capitalismo enquanto hegemonia econômica sistêmica nunca esteve tão bem estabelecido no mundo e, para piorar, no horizonte das esperanças não há sinal algum de alternativa vindoura. Superar o que se apresenta no estado de coisas do presente é um desafio que demanda muito mais do que a crítica (teoria) pode fazer, mas também exige muito além que qualquer ação irrefletida e isolada tenta realizar. Por isso, pensar sobre o que fazer requer um duplo movimento, e a este movimento duplo chamamos práxis.

Precisamos conceber a práxis como a ausência de desmesura entre o que se pensa e o que se faz. Dessa maneira, é sempre oportuno relembrar como Marx foi responsável por derrubar um velho tabu filosófico, a saber, a distinção radical entre práxis e poiesis. Os dois conceitos têm sua origem na antiguidade grega e, para o pensamento da época, designavam práticas antagônicas: enquanto a práxis era a ação livre na qual o homem não transforma nem modifica nada além de si próprio, a poiesis era seu exato oposto, no qual o que se visava era justamente a transformação do mundo material, da natureza e a fabricação de objetos. Com seu materialismo da processualidade, Marx conseguirá desestabelecer a distinção que mantinha os dois conceitos separados para fundi-los numa só noção, ou seja, não existe práxis que não dependa de uma poiesis, assim como não se realiza nenhum tipo de poiesis sem que exista uma práxis. Em outras palavras, se transformar o mundo é a meta, saber interpretá-lo torna-se imprescindível.

Também nesse âmbito estamos tratando, em última instância, da relação constitutiva sujeito-objeto. Para tanto, exige-se uma compreensão que vá além de um dualismo reducionista entre qualquer uma das partes. Ou seja, trata-se de compreender o nexo dialético entre sujeito e objeto que fundamenta e caracteriza a produção da vida dos homens. Não se trata de um sujeito pressuposto, dado a realizar uma prática idealizada, mas sim de uma relação constituinte entre o objeto material e o sujeito da atividade sensível. O sujeito se forma em nexo com sua prática e objeto, na mesma medida em que a prática irá revelar uma subjetividade mediante a qual corresponde o dinamismo do sujeito.

Acima de tudo, é de extrema importância que as contradições do capital deixem de ser apreendidas apenas em seu contexto conceitual para serem apreendidas no contexto contingente do aqui e agora da vida dos homens reais. Decifrar aquilo que foi eclipsado pelos nexos conceituais abstratos e superá-los na realidade entendida enquanto relações sócio históricas materiais. Realizar um deslocamento constante entre a generalidade conceitual abstrata da filosofia para a vida material dos indivíduos concretos, tendo sempre em vista a práxis em sua dialética contingente. A ação, desse modo, deve ser praticada no presente, em ato, pelas próprias mãos dos indivíduos corpóreos, no lugar de ser comentada ou anunciada – mas sabendo não existir prática possível que não passe por dentro de uma teoria. Uma ação que, ao se pautar pela análise materialista histórica de suas condições, conseguirá não só se sobrepor a ideologia dominante, como também edificar uma práxis capaz de revolucionar o mundo da vida e a vida no mundo.

No entanto, a práxis, na atualidade, foi relegada às sombras misteriosas da espontaneidade e, assim como a revolução, não é mais pensada nem praticada, o que se faz é esperar por elas. Na grande maioria das vezes, quando se fala de práxis, e novamente não é diferente com a revolução, ambas são pensadas como um momento creatio ex nihilo que em si abriga toda proposição futura. Nesse entendimento, não faz mais sentido o pensamento estratégico, a própria política radical é abdicada aos poucos, e o que nos resta é esperar, confiar no espontaneísmo e acreditar que quando a insurreição dos povos acontecer – se acontecer -, é a própria revolução e práxis que se edificarão autonomamente. Essa acepção serve-se de um arquétipo comum que tende a ver toda política, práxis e revolução possível como o momento extasiante da confluência dos corpos contestatórios, do levante, da revolta insurrecional dos oprimidos. Portanto, a destruição por si só é a verdadeira essência da práxis revolucionária. Esse momento que todos anseios aguardam estará prenhe de toda vida social futura, o dia da revolta destrutiva é o dia do surgimento do novo jamais exposto, mas sempre pressuposto. O novo assimilado ao sempre bom, ao melhor, e é a grande promessa dos profetas da revolução destrutiva. Não se sabe o que ele é, mas sabe-se que ele virá, e que ele é bom. Com isso os “radicais” se reconfortam e passam a ter a certeza de que, se o novo é bom, ele só pode ser algo muito semelhante do que para si próprios é o ideal. O novo, a práxis, a revolução são, portanto, o reflexo daqueles que os prometem e esperam. No entanto, para que possamos compreender a dimensão prática da teoria, e a dimensão teórica da prática, precisamos entender que uma, o tempo inteiro, está passando por dentro da outra. Por isso uma crítica radical, uma teoria revolucionária, deve expor sua práxis, caso contrário ela não se envolve, limita-se a observar e fazer apontamentos deslocadamente. Na práxis a teoria revela o fazer na mesma medida que o fazer a justifica. A própria perda da noção de estratégia representa esse desmembramento na atual produção crítica da esquerda. Um cego destino captura a relação do pensamento com a ação.


A maneira de captar a capacidade potencial de transformação tanto da revolução quanto da práxis é enxergar que elas estão muito mais ligadas com aquilo que são capazes de fundar, de constituir, de estabelecer de duradouro no interior da vida social. O conceito de Revolução [2] disseminado na época moderna e consolidado após as revoluções Francesa e Americana, pouca semelhança tem com os conceitos da Roma (mutatis rerum) e da Grécia (metabolai) antigas: a antiguidade conhecia a mudança política e a violência concomitante à mudança, mas nenhuma das duas é capaz de estabelecer um novo início. Ou seja, por mais que revoltas e insurreições ocorressem provocando alterações no corpo político e nas cidades, elas não representavam uma ruptura naquilo que a era moderna denominou “história”, não se defrontavam com o problema do início, da fundação, e por isso apenas recaiam num outro estágio de um mesmo ciclo. Para que uma revolução aconteça, é preciso haver uma espécie de ruptura que coloque a questão do início, uma quebra com a tradição vigente e toda história anterior que obrigue o povo revolucionário a pensar um novo [3] tipo de fundação, a constituição e a instituição de um novo corpo político e uma nova forma de organização social.

Atualmente ainda vivemos uma permanência da mentalidade dos anos 1960 e 70, que ingenuamente continuam a apostar na teoria per si ou nas práticas autônomas e isoladas como forma inexorável de toda transformação. Como exemplo podemos relembrar o que representou a filosofia de Deleuze e Guatarri a partir de Maio de 68. Após o esfriamento dos ânimos de 68 e o retorno ao que foi ferozmente criticado, vemos surgir um novo tipo de pensamento que buscava na teoria do “desejo” a chave de “transgressão” ao capitalismo, com isso toda uma geração de “subversivos marginais” pensava estar destruindo o capitalismo quando, na verdade, não faziam mais que aprofundar seus imperativos através da “lógica do desejo alternativo”. A lógica das necessidades sociais reduziu-se a fome de consumo compulsivo e na retórica mortífera do desejo. Não é de se espantar que a indústria cultural tenha aceitado esse discurso com benevolência. A celebração do fluído e do lábil convém ao fluxo incessante das trocas e das modas, a transgressão, que desafiava as normas e preparava a conquista de novos direitos, banalizou-se nos êxtases lúdicos da subjetividade consumista. Depois de 1968 o capitalismo com seu novo espírito não só fez todas concessões possíveis a esse campo como se utilizou dele para superar seus numerosos limites da época, que tinham se tornado obstáculos ao seu desenvolvimento. Cegos a tudo isso, ainda hoje é possível perceber, a maioria dos ambientes “progressistas” não querem render-se a essa mudança de paradigma e persistem incansavelmente na “transgressão” subjetiva, matando todo dia os mesmos cães já mortos. É duro dar-se conta, mas a superação do capitalismo não pode consistir no triunfo de subjetividades criadas pelo próprio desenvolvimento capitalista. A própria busca de um sujeito revolucionário é sintomática dessa concepção: ora se fetichiza o trabalhador de fábrica, ora os marginais, ora os desviantes, os subversivos, como se esse “povo”- seja lá por qual tipo de sujeito ele é constituído – fosse revolucionário por sua essência subjetiva e que, caso fosse dada a oportunidade de seguir suas essências “revolucionárias”, sem o impedimento de manobras de dirigentes e burocratas, triunfaria na superação do capitalismo pura e simplesmente pela subjetividade que possui. A isso tudo se soma a inocência de discursos entusiasmados e bem-intencionados sobre o estabelecimento de comunidades tribais, de nichos que acabam por só servir para que se construam formas de vida alternativas, “radicais”, mas totalmente subordinadas à perpetuação do capitalismo sistêmico, que em nada alteram o funcionamento do metabolismo social do capital, vivendo isoladas nas amplas margens que o próprio capital estabelece. [4] Os únicos sujeitos capazes de levar a cabo uma revolução são aqueles determinados a romper com o núcleo duro do próprio sistema de produção e reprodução capitalista, com suas macroestruturas e modos de dominação e perpetuação econômicos. Por isso a transformação real e possível é aquela capaz de alterar concretamente o eixo de reprodução do capital. Uma crítica radical é inseparável do traçado estratégico de um agente social em relação ao qual é possível vislumbrar uma alternativa estrutural à ordem social dada. Não é possível articular o conteúdo de uma crítica social radical sem a identificação de uma força social capaz de se tornar a alternativa hegemônica à classe dominante da ordem estabelecida.

Nessa conjuntura podemos, tragicamente, notar aquilo que Arendt temia: a dissolução da política. O espaço público encontra-se laminado sob as pressões do terror econômico e as lamentações de um moralismo abstrato, de modo a assistirmos calados ao depauperamento da política e seus atributos (a estratégia, o projeto, a ação conjunta). Essa dissolução acontece não pelo seu desaparecimento, e sim no seu revestimento estético, ou seja, a estetização da política que se expressa através da exaltação das proximidades, das microesferas, do acúmulo ornamental e a busca de um simulacro de autenticidade. No fundo tudo isso só faz transparecer uma certa desorientação contemporânea diante da incerteza da ação política. Com isso caminhamos para o que Hegel denominava “uma diversidade sem diferença”, um caldo azedo de singularidades indiferentes que ressaltam pequenas diferenças para que possam deixar de pertencerem como cidadãos ou membros de uma classe social e melhor aderirem às suas próprias demandas identitárias e, então, erguerem locais de adoração sobre as ruínas desoladas da praça pública. Contra isso deveríamos mais do que nunca reafirmar a relevância da contingência estratégica, da arte da decisão no momento propício. É muito fácil se perder nos sonhos de uma possibilidade abstrata quando as possibilidades concretas estão eclipsadas. Sonhar acordado com as impossibilidades possíveis é sempre um lugar de fuga mais confortável do que confrontar-se com as possibilidades determinadas pela materialidade do real: onde cada situação é singular e o momento de decisão é sempre relativo a essa situação, adaptado ao objetivo a ser atingido. Por isso a razão estratégica da política deve ser vista como a arte da resposta apropriada. No lugar de realizar sobrevoos em torno da situação, ela tenta enraizar-se para pôr em questão as regras e as normas estabelecidas e oferecer saídas e mudanças concretas.


O capitalismo detém, enquanto sistema de reprodução do capital, a penetrante capacidade de transformação das questões políticas em questões meramente “econômicas”, e essa sua separação “estrutural” é um de seus mecanismos mais eficientes. Não à toa, Marx sempre insistiu em falar em termos de uma economia política em contraste com Ricardo e Smith, que tentavam explicar as novas dinâmicas do mundo industrial apenas em termos econômicos. Um dos segredos fundamentais da produção capitalista [5], descoberto por Marx, refere-se às relações sociais e à disposição do poder que se estabelece entre os proprietários e o capitalista. É uma disposição do poder que tem como fundamento a configuração política do conjunto da sociedade, por isso podemos dizer que o capitalismo tem como seu segredo uma dimensão política que é escamoteada pela dimensão econômica. A própria economia não se constitui sobre uma rede de forças incorpóreas, mas sim sobre o conjunto das relações sociais que são, em primeira e última instâncias, políticas. Ao separar o sistema de produção de seus atributos sociais específicos, economistas partidários do capitalismo intentam demonstrar uma certa “eternidade e harmonia das relações sociais”, quando na realidade se esforçam para ocultar que os modos de produção têm seus alicerces na exploração politicamente legitimada de uns sobre outros. Apresentá-las em seu aspecto político, portanto, tornar-se o modo de permitir que sejam realmente contestadas como relações de dominação, como direitos de propriedade, como poder de organizar e governar a produção e a apropriação. Em suma, o objetivo dessa postura teórica é prático, buscar lançar luzes sobre o terreno de luta observando os modos de produção não como estruturas abstratas, mas como eles realmente enfrentam as pessoas que devem agir em relação a eles.

A maioria dos movimentos anticapitalistas são extremamente eficientes em trazer à tona os efeitos devastadores do capitalismo e sua “globalização”, no entanto, sob certos aspectos acabam por se basearem em premissas falsas: ao tentarem explicar o capitalismo globalizado, atacam seus imperativos destrutivos por serem globais, ao invés de atacarem por serem capitalistas. Ou seja, como disse Ellen Wood [6], parece que suas principais tarefas não é desafiar o capitalismo em si, mas apenas destituir seus instrumentos de alcance global. Nessa acepção acabam por negligenciar o papel ainda preponderante do Estado capitalista na dinâmica mundial do capital, pois pensam que as multinacionais se tornaram tão poderosas que já não precisam mais das funções extra-econômicas que o Estado – e enxergam o Estado enquanto entidade progressivamente enfraquecida – permite que sejam cumpridas para a manutenção da ordem da propriedade e das condições de pleno funcionamento do mercado, entretanto, assim como o Estado está longe de ser fraco, as multinacionais estão longe de serem todo-poderosas [7]. Os Estados-nações capitalistas são a única instituição não econômica verdadeiramente indispensável ao capital. O que não quer dizer que podemos generalizar nossa concepção de Estados enquanto entidades substancialmente capitalistas. Isso tudo nos indica apenas como, sob o império do capital, até mesmo os Estados, enquanto macroestrutura política, estão subordinados aos seus imperativos e dessa forma se tornam condição sine qua non para sua existência [do capitalismo] enquanto tal.

Marx certa vez observou que os impasses das lutas de classes do passado geralmente acabavam na ruína de ambas as partes em conflito. Com certeza ele não imaginava que um dia a própria humanidade teria condições de se auto-exterminar, isto é, não precisamos nem de entrar em detalhes de como uma possível terceira guerra mundial nuclear poderia não só exterminar o mundo humano como também o próprio mundo enquanto organismo natural. Mas o que Marx soube perceber e imaginar muito bem foi como o potencial destrutivo do capital deveria ser contido de alguma maneira, não por acaso sua obra magna chama-se “O Capital” e visa não só a superação do capitalismo enquanto apoteose da produção e reprodução de capital, mas o próprio capital em si, enquanto categoria histórica que nucleia a formação da vida social. Como única alternativa possível ao capital Marx prescreveu o que ele entendia por socialismo/comunismo. Ora, para sua própria sobrevivência a humanidade precisa de um mínimo de unidade para conseguir escapar de sua implosão, e onde poderá encontrá-la senão no socialismo comunista? No entanto, num mundo de sistemas sociais conflitantes e em mutua interação de dependência uma ruptura torna-se mais cedo ou mais tarde inexorável, diante disso, o problema não é “se”, mas “como” será essa ruptura. Será por meios militares devastadores ou através de válvulas sociais adequadas para o alívio das crescentes tensões sociais? Como disse Mészáros, “a resposta dependerá de nosso sucesso ou fracasso na criação dos necessários movimentos estratégicos, e instrumentos capazes de assegurar uma efetiva transição para uma sociedade socialista, na qual a humanidade possa encontrar a unidade que necessita para sua simples sobrevivência”.

Nos resta, agora, explorar e tentar tornar palpável o que seria uma alternativa socialista à (des)ordem vigente. Se acompanharmos o movimento progressivo de desenvolvimento do capital, principalmente no capitalismo, conseguimos observar que uma característica marcante de seu movimento é a transferência do controle que a sociedade detém politicamente sobre si própria para uma alienação que se realiza autonomizando-se em relação à sociedade, de modo que a vida social se vê refém de leis que não controla. Portanto, em primeira instância, uma alternativa socialista necessita de postular o controle social da produção e distribuição como seu axioma básico, pois capitalismo e a racionalidade do planejamento social abrangente são radicalmente incompatíveis (Mészáros). A política, no capitalismo hipertardio, reduziu-se a seguir um padrão de movimento reativo e de curto prazo, que não visa em nenhum momento alguma alternativa além das inúmeras tentativas de amenização dos prejuízos gerados pelo capital, permanecendo sempre, de modo servil, dentro dos limites postulados pela “mão invisível”. Por isso reconhecer essa urgência é o primeiro passo para prescrever estratégias [8] capazes de afetar profundamente o metabolismo social como um todo, que diferem substancialmente da indulgência dos programas “praticáveis” de ajuste socioeconômicos, em que o critério da praticidade é sempre a manutenção da produção capitalista. Porém, e aqui é preciso uma ressalva, é sempre importante compreender que o capital não só precede, mas também pode facilmente sobreviver sem o capitalismo [9]. Por isso o que está em jogo é a superação da produtividade do capital [10], produtividade essa que necessariamente se define pelo imperativo da sua implacável auto-expansão alienada como produtividade destrutiva, que sem cerimônia destrói tudo que estiver em seu caminho na busca cega de valorizar-se. Mas é claro que, se não obtivermos êxito em superar o capitalismo enquanto sistema que é, dificilmente conseguiremos encontrar alternativas ao capital.
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István Mészáros traça três alternativas ao domínio dos imperativos econômicos pautadas pela precisão de uma restruturação da economia:

1. A necessidade de gerar um novo tipo de produtividade sobre as ruínas da destrutiva e dispendiosa subordinação das energias e forças produtivas da sociedade do capital, em função de suas perversas necessidades de auto-expansão.
2. O desafio de estabelecer uma alternativa viável ao complexo militar-industrial. Isso se apresenta: a) como a necessidade de encontrar uma solução econômica para a mais destrutiva lei do capital, que de início o trouxe à existência: a taxa de utilização decrescente [11], que está tendendo a zero; b) a criação de condições políticas de segurança coletiva e desarmamento mundial, paralelamente ao estabelecimento de um novo esquema institucional de relações entre Estados, sob o qual o complexo militar-industrial perde sua justificativa e legitimação.
3. A instituição de uma relação igualitária radicalmente nova e verdadeira com os países ditos do “terceiro mundo”, na base de um positivo reconhecimento das dependências recíprocas e necessárias interdeterminações, num mundo cujos constituintes socioeconômicos não podem mais permanecer nem isolados, nem estruturalmente subordinados uns aos outros, caso queiramos ver um desenvolvimento global sustentável.

Desse modo, devemos ter sempre em mente que toda tarefa de uma restruturação da economia deve ser substancialmente político-social antes mesmo de econômica, pois somente uma iniciativa política pode ser capaz de agir nas brechas abertas pelo sistema, o que muito enfatiza o poder da ação política sob tais condições. Tal poder só conseguirá ser verdadeiramente eficaz caso se reconheça que somente uma autodeterminação radical da política pode prolongar o momento da política radical, ou seja, a solução precisa emanar de uma bem-sucedida conversão de um “tempo transitório” para um “espaço permanente” por meio da restruturação dos poderes de tomada de decisão. Para ter êxito em seu objetivo a política radical precisa transmitir suas aspirações ao próprio corpo social, do qual, e somente do qual, as demandas políticas e materiais subsequentes podem derivar e, assim, ter as condições de sustentar sua própria linha estratégica, em lugar de militar contra ela.

Nesse ínterim surge a necessidade inalienável da democracia, que não deve ser concebida como um método de formulação e tomada de decisão apenas no âmbito estatal, mas sim como uma forma de vida, como um modo cotidiano de relações entre homens e mulheres que orienta e regula o conjunto das atividades de uma sociedade. Ou seja, existe um claro contraste entre uma democracia governada e uma democracia governante e, por isso mesmo, genuína. A democracia enquanto modo de vida deve ser ela própria entendida enquanto uma práxis social. Contra aqueles que tentam reduzir a democracia a um projeto que se esgota na “normalização” das instituições políticas e que só coloca problemas de governabilidade e eficácia administrativa, podemos sempre relembrar, como bem expresso por Atilio Borón [12], do ideário democrático da Grécia antiga, ou mesmo nas cidades-estados livres da Itália, na qual foram plataformas históricas em que os povos lutaram por novas e mais fecundas formas de participação e construção do poder político. Mas, se não pautarmos uma mutação radical na estrutura da sociedade como um todo através do tema de uma revolução, dificilmente conseguiríamos edificar o socialismo democrático radical. E se qualquer outra tentativa de revolucionamento da ordem social repetir o erro das experiências passadas de desconsiderar os valores democráticos, com certeza a frustação não será diferente. Uma revolução socialista deverá ser democrática, ou não será.

À guisa de conclusão, portanto, gostaria de ressaltar que o que foi aqui desenhado trata-se de indicações incipientes, considerações teórico-práticas e o estabelecimento de prescrições estratégicas que por si só jamais serão capazes de efetuar alguma mudança genuína no metabolismo social. Os desafios são inúmeros e vão muito além do que pode ser abordado nesse breve texto, no entanto, acredito que aqui já podemos vislumbrar germes estratégicos para nossa práxis futura. Começarmos por compreender que a necessidade de um movimento radical coerentemente organizado, com influência real nas massas, completamente diferente da atual predominante manipulação de indivíduos como curral eleitoral, torna-se, cada vez mais, uma necessidade inexorável, e que é impossível que algo dessa natureza possa surgir sem que se crie raízes profundas no social através do trabalho apaixonado, dedicado e vital da educação política. Independentemente do tamanho das dificuldades a serem enfrentadas, a recusa da resignação é sempre um primeiro e indispensável passo.

Notas
[1][1] Ver István Meszéros, “Para além do Capital” e “Crise estrutural do Capital”.
[2] [1]Ver Hannah Arendt, “Sobre a Revolução”.
[1][3] Importante ressaltar que esse novo não é projetado para o futuro destituído de um conteúdo positivo, o novo que uma práxis revolucionária deve ser capaz de fundar é o oposto do novo negativado da maioria dos jovens infelizes contemporâneos, ele, ao invés de relegar ao nada a fonte de sua edificação, se constrói através de proposições concretas e capazes de reordenar o metabolismo social – veremos mais adiante em que ele se consiste.
[4] [1] Se ás vezes fica a impressão de que o presente texto ataca mais seus possíveis aliados do que seus verdadeiros inimigos, gostaria de ressaltar que a crítica construtiva e impiedosa é um dos maiores favores que podemos fazer para os nossos pares. E além do mais, não podemos nos esquecer que o capitalismo da crise é parte indissociável da crise da esquerda, que não mais consegue persuadir o descontentamento gerado pelo esmorecimento das perspectivas de futuro, deixando aberto e livre o campo para o reacionarismo renascente.
[5][1] Um modo de produção não é somente uma tecnologia, mas uma organização social da atividade produtiva, e um modo de produção baseado na exploração é uma relação de poder (Wood).
[6] Ver Ellen Wood, “O que é anticapitalismo?”.
[7] Por mais livremente que o capital se mova ao redor do mundo, ignorando fronteiras territoriais, a verdade é que ele ainda depende tanto quanto sempre dependeu (ou mais) do suporte local, especialmente aquele proporcionado pelos Estados nacionais. Isso significa que as forças verdadeiramente democráticas, no nível local e nacional, dentro ou fora do Estado, podem fazer uma real diferença.
[8] [1]Sem se estabelecer uma estratégia, torna-se extremamente rarefeito o emprego de qualquer tática a curto prazo no dia a dia, por isso uma perspectiva estratégica tem tamanha relevância no momento de pensar em medidas realmente eficazes para a transformação concreta.
[9] [1]A identificação conceitual entre ambos fez com que todas as experiências revolucionárias vivenciadas no século passado, desde a Revolução Russa até as tentativas mais recentes de constituição societal socialista, se revelassem incapacitadas para superar o “sistema de sociometabolismo do capital”, isto é, o complexo caracterizado pela divisão hieráquica do trabalho, que subordina suas funções vitais ao capital.
[10] Existe uma enorme disparidade entre a capacidade produtiva engendrada pelo capitalismo e o que ele, de fato, oferece. A produção não é determinada pelas necessidades da sociedade, mas por aquilo que proporciona mais lucro.
[11] [1]Isto é, a diminuição gradual do “tempo de vida” de uma classe ou categoria de bens de consumo (duráveis ou não): “em sua tendência geral, o modo capitalista de produção é inimigo da durabilidade e, portanto, no decorrer de seu desdobramento histórico, deve minar de toda maneira possível as práticas produtivas orientadas-para-a-durabilidade, inclusive solapando deliberadamente a qualidade”.
[12][1] “Estado, capitalismo e democracia na América Latina”, Atilio Borón

As imagens que ilustram o texto são de Sandro Chia.

FONTE. PASSAPALAVRA

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