Urubus e arapongas nas manifestações e o nó que amarra a democracia
Por Edson Teles.
Parece que o capitão do
Exército Wilson Pina Botelho, disfarçado sob o codinome Balta, se infiltrou
entre jovens ativistas e militantes e armou, no dia de uma das maiores
manifestações contra o governo golpista de Michel Temer (por enquanto), uma
arapuca contra um grupo que se reunia para caminharem juntos em direção à
avenida Paulista. Em uma espécie de história digna de ditadura, misturado com a
imagem de uma piada sobre a espionagem no país, o caso chamou a atenção para a
presença do falso perfil de esquerda em meio aos movimentos de protesto. Teria
ele sacrificado sua identidade secreta para prender duas dezenas de jovens que
não representavam “perigo à ordem pública”?
O seu percurso lembrou
casos da ditadura, em que oficiais das Forças Armadas ou agentes trabalhando
para a polícia política eram cuidadosamente inseridos nas organizações de
resistência ou movimentos de oposição. Realizavam uma cartografia dos
militantes e da organização, mapeando nomes, redes, locais de reunião etc. O
serviço de informações da repressão necessitava de seus dados para prender,
torturar e assassinar os oposicionistas.
Se considerarmos que o
Balta foi pego direcionando as forças policiais para a prisão de um grupo bem
menos articulado que os movimentos de resistência ou do que uma organização de
ação armada em manifestações, como a Polícia Militar queria levar a opinião
pública a crer, poderíamos chamar o capitão do Exército brasileiro de araponga.
Os espiões ficaram
conhecidos pela gíria nacional como arapongas, nome de uma ave cujo som é
espalhafatoso e que chama muita atenção, pois possuiriam a qualidade oposta a
de um bom agente secreto. Seria uma sátira do serviço de informações
brasileiro.
Assim, o capitão
apareceria como um verdadeiro trapalhão em seu serviço de inteligência, uma
piada nacional estragando seu anonimato. Poderíamos até mesmo imaginá-lo
tomando uma bronca do general que comanda sua unidade de elite para
infiltrações nas organizações de esquerda.
Mas e se imaginarmos uma
outra função para a atividade “displicente” do Balta? E se, no lugar de um
araponga verdadeiro, aquele que chama atenção para si por engano, o
concebêssemos como um falso araponga, um verdadeiro urubu.
Com todo o respeito aos
urubus, aves inteligentes e de suma importância em um ecossistema, nos
apropriemos de sua qualidade de carniceiro. Imaginemos o araponga desvendado,
capitão anônimo em meio aos ativistas, como um carniceiro, farejando a
oportunidade de realizar seu banquete. A carniça aqui se referiria,
naturalmente, à montagem de um discurso da segurança visando produzir, ou
alimentar, no imaginário nacional a ideia de um conflito contra o inimigo
interno.
Discurso fundado em nosso
território a partir da lógica da Doutrina de Segurança Nacional (tratamos deste
tema no post “Democracia de efeito moral”), cuja efetividade seria autorizar
formas de controle, em especial da atividade política, em nome da segurança de
todos e de cada um. Seria uma mistura da disseminação do medo e da legitimação
de dispositivos de vigilância e controle, independente do que dizem as leis. O
fundamental para os efeitos de poder deste discurso é a produção da ideia de
guerra civil, de pavor de quem transita próximo a você, mas que é diferente e,
por isto, estranho.
Se no discurso político
jurídico todos são um único, universais e naturalmente iguais, no discurso da
segurança não haveria sujeito neutro, estando todos enredados em um ou outro
lado da pendenga entre adversários que, no mais das vezes, são inimigos.
Os vivas à democracia, ao
estado de direito, à Constituição, às leis e à ordem, convivem com o ódio ao
outro, o racismo violento, o preconceito contra o nordestino, o desejo
intervencionista, as homo/trans/lesbofobias, o machismo, a perseguição à
militância política.
Aparentemente, a
redemocratização do país significou, segundo discursos explicativos do sucesso
do regime político, a chamada reconciliação, mediante as leis escolhidas pelos
poderes legítimos e sancionadas pelas vitórias de uma racionalidade política.
Contudo, lá onde se encontram as lutas locais, específicas, territorialmente
circunscritas, a violência política permanece. Em muitos casos se poderia dizer
que aumenta e se torna mais contundente.
Analisar a ordem, as leis,
os direitos e as conquistas democráticas talvez nos obrigue a estudarmos também
as revoltas, os protestos, as manifestações e o conflito violento com a Polícia
Militar, tanto quanto os acordos legislativos, os debates para a redação de uma
lei, a história dos partidos e o registro das eleições.
Sob o discurso da
pacificação, subjaz o da guerra que ainda não chegou a sua maior batalha, do
armistício que antecipa o momento mais violento, da ameaça de se desfazer os
acordos. Isto quer dizer que, apesar de termos uma Constituição – cidadã para
alguns, liberal e moderada para outros – os inimigos continuam a habitar os
mesmos territórios e obrigam a todos uma convivência tolerada, mas nunca
finalmente desejada.
Nesta forma de ver a
democracia, não se chegará à paz com reconciliação, mas somente com a vitória
final, quando os adversários (no discurso da ordem soberana) ou os inimigos
(segundo o discurso da segurança) forem definitivamente eliminados.
A encenação ocorrida no
Centro Cultural Vergueiro, em
São Paulo , produziu pelo menos dois efeitos.
O primeiro foi alimentar o
já existente discurso da segurança, instituidor do inimigo interno e
legitimador da violência contra o diferente, o não desejado. Haveria, nesta
ótica de uma política militarizada, grupos se organizando para “vandalizar” a
ordem. O que autoriza a violência policial.
O segundo seria a
intimidação da explosão da questão política para uma nova geração de ativistas,
cujo maior trunfo é justamente a coragem (vide junho de 2013, movimento “Não
Vai Ter Copa!”, ocupação das escolas secundaristas etc.).
Haveria o ganho, para a
lógica do controle, da disseminação do pânico entre os jovens, embebidos de
histórias sobre a repressão na ditadura. Notável lembrar que, em uma das
reportagens sobre o caso, um dos presos diz que o policial lhe dirigiu a
palavra nos seguintes termos: “o sonho de vocês não era ser preso pela
ditadura? Vocês não queriam ser presos pela ditadura? Tá aí, agora estão sendo
presos pela ditadura”.
Não estou dizendo que tudo
foi premeditado. Seria muita teoria da conspiração e, inclusive, desnecessário.
Falo de efeitos produzidos, não importa a intenção. O urubu não prevê onde a
oportunidade está, mas a procura pelo odor da coisa apodrecida.
Na democracia brasileira,
o podre se encontra no nó entre o discurso de igualdade, liberdade e direitos e
o discurso de segurança, da guerra e do inimigo interno. Como desatar este nó?
Edson Teles é doutor em
filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia
política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo,
organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura:
a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy:
movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012). Colabora para o Blog da
Boitempo mensalmente.
Muito bom o texto. Mas 2013 é uma referência infeliz. Um movimento estimulado para coisa nenhuma a não ser fomentar o ambiente favorável ao desfecho de 2016, dando suporte às recorrentes alegações de um "clamor das ruas" (exatamente aquelas ruas) na boca de deputados e senadores que sagraram com seu voto o golpe de estado na democracia brasileira.
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