O Brasil sob o golpe: seis hipóteses polêmicas
Caminho será áspero. Mas
os elementos para enfrentar o retrocesso e reconstruir um projeto de esquerda
são reais e já estão visíveis
Por
Antonio Martins
Toda
grande derrota é desconcertante, mas certos elementos ampliaram, durante os
longos meses por que se arrastou o golpe brasileiro, a sensação de impotência.
Como um Parlamento degradado, uma mídia anacrônica e um empresariado decadente
puderam vencer? Por onde se esvaiu o longo esforço de denúncia e
conscientização sobre as misérias da ditadura pós-64? Por que uma sociedade
implicada em tantos processos de auto-transformação rendeu-se a deputados e
senadores cuja debilidade moral e intelectual evidenciou-se sucessivas vezes?
E o que
virá agora? Uma longa noite de retrocesso e terror, como a que se iniciou em
1964? A devastação, a toque de caixa, das conquistas penosamente alcançadas
desde a Constituição de 1988? A prisão de Lula? O cancelamento das eleições de
2018 e a consolidação do golpe? A reversão radical dos sonhos tramados por
muitos em 2013 – e a morte prematura dos planos para uma sociedade articulada
em torno do Comum?
As
hipóteses a seguir são assumidamente precárias: foram construídas no tumulto e
comoção dos últimos dias, quando se aproximava o que alguns veem –
provavelmente com grande dose de razão – como os estertores da Nova República.
Nossas hipóteses buscam, porém, despir o golpe do que ele tem de mais forte: a
aura de poder misterioso, construída graças à precariedade de nosso debate
público – tanto nas velhas mídias quanto entre aqueles que se recusam a
enxergar os limites e contradições do projeto lulista, hoje derrubado pela
força.
O golpe
não foi apenas uma trama de bastidores. Uma conjunção particular de fatores
permitiu que a sociedade visse, em seus algozes, esperança. O governo Temer irá
se desgastar cada vez mais, mas não será possível derrotá-lo a golpes de Fora!
Acusar moralmente os opressores, e os que foram coniventes, pode ser
pessoalmente mobilizador – porém é vão. Desconstruir o golpe e – muito mais
importante – rearticular um projeto de crítica e transformação social exigirá o
esforço penoso de compreender as debilidades que produziram derrota e de encontrar
os caminhos para revertê-la. Oxalá as hipóteses a seguir contribuam para isso.
1. O fim da Nova República pode
ser o recomeço das grandes disputas
Talvez
seja cedo para afirmar, como fizeram pioneiramente os cientistas políticos
Leonardo Avritzer e Marcos Nobre, que o impeachment de Dilma Roussef marca “o
fim da Nova República”. Tempos turbulentos são marcados por reviravoltas; a
conjuntura brasileira tende a ser muito instável, nos próximos anos; e uma
tentativa anterior de romper (com Collor de Mello) o pacto firmado com a queda
negociada da ditadura foi logo adiante revertida. No entanto, a definição de
Avritzer Nobre capta precisamente o movimento que levou ao golpe.
As
classes conservadoras romperam a conciliação urdida com a eleição de Tancredo-Sarney.
Ela abriu caminho para os avanços civilizatórios e o reconhecimento de direitos
sociais reivindicados nas lutas contra o projeto dos militares e consagrados em
seguida, com a Constituinte de 1988. Ao mesmo tempo, conservava, em essência,
os privilégios, a desigualdade e o atraso estruturais do Brasil: a concentração
colonial de patrimônio, terra e renda; a segregação urbana que reproduz, nas
periferias, as senzalas (ou quilombos…); a vocação primário-exportadora,
agravada por a uma relação predatória com a natureza; o poder político que
reconhece apenas formalmente as eleições diretas, já que um Legislativo sempre
controlado pelas elites atua como guardião dos privilégios.
As
classes conservadoras romperam o pacto, essencialmente, por dois motivos. Seus
preconceitos atávicos não lhes permitiram perceber que o acordo proposto pelo
lulismo era uma oportunidade rara de manter estável, por longo prazo, um status
quo que lhes é amplamente favorável. Nisso, mostraram-se muito mais atrasadas
não apenas que a social-democracia europeia do pós-II Guerra mas, também, que
os brancos sul-africanos pós-Mandela.
Mas a
análise das causas que levaram ao golpe será falsa se não levar em conta,
também, o cenário internacional adverso. Desde a crise de 2008, está em curso
uma tentativa de restauração conservadora, nos planos político e geopolítico.
Ela visa retomar a imposição das lógicas neoliberais (contestadas brevemente na
primeira década do século) e recompor a hegemonia dos Estados Unidos e União
Europeia (desgastada pela emergência da China, o reposicionamento da Rússia e,
até há pouco, pela rebeldia parcial da América do Sul).
Esta
tentativa de restauração, extremamente agressiva. não reconhece os limites
antes impostos pela democracia, pelos direitos humanos e mesmo pelos valores
humanitários. Ela significou, na América do Sul, o apoio norte-americano –
fartamente documentado – aos golpes de Estado em Honduras e Paraguai. Envolve
estabelecer vigilância generalizada sobre a internet, neutralização de seu potencial
rebelde, perseguição implacável dos que buscam potencializá-lo (como Julian
Assange, Aron Schwarz, Edward Snowden ou Chelsea Manning). Implica a
sustentação de Washington a governos com presença ativa de partidos abertamente
nazistas (como na Ucrânia), desde que dispostos a enfrentar supostos
“inimigos”, como a Rússia. Inclui a destruição de Estados nacionais e a criação
de cenários caóticos em países como Iraque, Paquistão, Líbia, Yemen, Síria.
Toda
tentativa de compreender o golpe brasileiro sem levar em conta também este
fator externo será infrutífera e contraproducente. Não permitirá enxergar que o
New York Times e o Le Monde condenam retoricamente a deposição de Dilma, mas os
mercados financeiros, os “investidores internacionais”e as agências de
avaliação de risco a celebram.
Mais
importante: não enxergar as causas internacionais que impulsionaram o golpe nos
afastaria de uma enorme oportunidade. A ofensiva conservadora global é
extremamente vulnerável. Ela reduziu as antigas instituições democráticas a um
fantoche. Ela despertou, em todo o mundo, o desejo de superação gradual do
conceito de representação e de reinvenção da democracia. Em sintonia com este
sentimento, vencer o golpe não significaria restaurar Dilma (Volta, querida!),
mas denunciar o Congresso e lutar por uma vasta agenda de reforma política.
Estaremos dispostos a isso?
–
Próxima
hipótese:
O lulismo
parece esgotado. Mas sua herança será fundamental
Fonte. OUTRASPALAVRAS
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