Rio de Janeiro: Sangue, suor e lágrimas
Uma
obra inquietante, composta por histórias que reviram sentimentos, abalam
certezas e revelam nossa vulnerabilidade diante de uma crescente violência que
penetra nos poros e se espraia por toda a sociedade brasileira. Nada mais
revelador de nossa aporia civilizacional, das contradições irremediáveis que
parece padecer nossa brasilidade do que o palco sobre o qual se desnudam
personagens reais no livro Rio de
Janeiro: histórias de vida e de morte, do antropólogo Luiz Eduardo Soares
-, o Rio de Janeiro. É no transcorrer das tramas e tragédias humanas,
demasiadamente humanas, que as camadas de significado vão se tornando mais
fluidas, e novas sínteses parecem ser possíveis uma vez que as vidas e trajetórias
não possuem linearidades empobrecedoras, muito pelo contrário. Nada parece ser
como se mostra a primeira vista, seja a figura de um poderoso chefe do tráfico,
de um playboy hedonista, atentados
mafiosos (milicianos em terras tupiniquins) ou mesmo político de envergadura
nacional, vez que as fragilidades humanas, muitas vezes de dimensões éticas,
são trazidas à tona para revelar gestos, performances e movimentos que, de
outro modo, permaneceriam nas coxias do teatro do poder no Brasil, recalcados
por uma espécie de violência sistêmica
que impõe o silêncio a tudo que apresenta poder latente de promover irrupções
sociais em nossa história.
Partindo
de narrativas ora em primeira pessoa, ora em terceira, variação que não
interfere na força e profundidade dos relatos e análises, Luiz Eduardo Soares
impressiona na articulação de diversas esferas da realidade brasileira expostas
em suas fraturas historicamente constituídas. É através de micro histórias que
conduzidos pelo autor adentramos aos subterrâneos do Brasil contemporâneo,
acordos políticos espúrios que submetem sonhos e esperanças a disputas de
posições de poder, articulações perversas entre o crime organizado e forças
políticas, o fascínio narcísico que o mercado internacional de drogas pode
exercer sobre indivíduos bem posicionados na estrutura social, corrupção
endêmica que corrói nossas instituições de segurança pública, os porões da
ditadura e suas práticas de tortura que se perpetuam em ações ainda muito
denunciadas que tomam como alvo principal nossas polícias. Ao narrar
acontecimentos próximos, o autor não deixa de apontar rastros que podem ser
seguidos no sentido de ampliar o espectro de visão e análise sobre as cenas que
se desdobram numa espécie de thriller
frenético de um filme de suspense que angustia, ainda mais, pela sensação de
que a qualquer momento virá o golpe derradeiro, porém este não vem,
mergulhando-nos numa espécie de purgatório dantesco...
Assim,
a partir do temor do chefe do tráfico do complexo da Maré que vive instantes de
forte apreensão, que antecedem a iminente ação policial que instalará mais uma
Unidade de Polícia Pacificadora – UPP, da guerra fratricida entre facções
rivais que assolam a comunidade e dificuldades enfrentadas por essas mesmas
organizações criminosas em consolidar seu domínio territorial mediante o uso
indiscriminado da violência, é possível unir pontas que revelam dilemas
profundos enfrentados pelas metrópoles brasileiras. As mudanças no capitalismo
contemporâneo, mais financeirizado, marcado pelo rentismo predominante, fluido
e flexível, que não permite a fixação de seus capitais em territórios, exigindo,
portanto, maior mobilidade pelo espaço urbano parece compor o pano de fundo da
crise do tráfico como é operado nos morros cariocas. Seria esta uma das razões do
declínio do tráfico baseado no emprego de tropas armadas, treinadas que
intencionam a dominação e estabelecimento de territórios definidos de atuação? A
sensação é de estarmos testemunhando a incapacidade de nossas instituições
formuladoras de políticas públicas em dar conta da dinâmica das novas
complexidades que envolvem a tragédia do tráfico, bem como da derrocada de
nosso antiquado ordenamento jurídico que se aferra numa lógica punitiva e
encarceradora, incapaz que tem se mostrado em contornar os vieses, restos e
sobras do fazer humano em terras periféricas. Esses elementos, por sua vez, parecem
não ser absorvidos por uma legislação carente de imaginação e força criativa e
que seja capaz de se reinventar permanentemente.
Do
mesmo modo, ao revelar encontros e festas privadas, muitas movidas por
inconfessáveis motivos, envolvendo empresários, políticos, autoridades públicas
de variados níveis e instâncias de poder, destacando seus acordos e negociatas
com intuito de manutenção de velhas estruturas de dominação, mostra-se de forma
dramática a reprodução de arcaísmos que há muito penetraram nas composições
modernizantes no Brasil, processo que parece não se desenvolver de outro modo
que não abraçado às forças do atraso, ainda marcado pelo clientelismo e
patrimonialismo à brasileira. As dores sentidas nas carnes, o pavor e horrores
psicológicos a que foram submetidos os perseguidos políticos em nosso país,
vítimas dos tenebrosos anos de chumbo do golpe empresarial, civil e militar
(1964 – 1985), projetaram em nossa sociedade contemporânea suas estruturas
perversas. O tempo não foi suficiente para curar as chagas abertas pela
repressão, não fomos capazes de atravessar o fantasma da ditadura, reconhecer
nossos erros históricos, reinventarmos nossas instituições, de criar novas
formas de exercício da autoridade institucional do Estado. O resultado é a
permanência do estado de exceção, cujas “práticas cruéis voltaram a apontar seu
crivo seletivo para pobres e negros, moradores de favelas e periferias” (p.
165), afinal, “os benefícios do estado democrático de direito ainda não
chegaram à base da pirâmide social” (idem). Neste ponto, acrescentaria que a
depender dos [des]caminhos de nossa história recente percorridos pelo autor,
não há indícios de que estejamos próximos de ampliar os espaços de inclusão
cidadãs para além de alguns (mesmo que importantes) avanços conquistados nos
últimos anos.
São
nove histórias narradas por nosso antropólogo, muitas em tom confessional, que
revelam as inseguranças, medos e incertezas de um homem que se defrontou com o
desafio de tentar fazer reais os sonhos de uma geração. Para aqueles que
identificarem, não sem certa razão, um pessimismo renitente nas letras de
Soares advirto: as histórias aqui encenadas não nos levam ao calabouço eterno,
mas, ao contrário, apontam o que certamente pode ser considerado primeiro passo
para nossa redenção: o reconhecimento de nossa miséria.
David
Moreno Montenegro
Prof. Do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE
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