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As peripécias do cordel na vida além da vida




As peripécias do cordel na vida além da vida

Por Paiva Neves - Poeta e Cordelista

Diz o dito popular, que a única certeza na vida é a morte. É verdade! Ninguém escapa dessa senhora de capa e goiva! A grande incerteza é depois dela. Alguns, a exemplo desse escriba, entendem que o enredo acaba na dita, ou seja, morreu acabou. Já a grande maioria acredita em outro mundo outra vida. Esses, dependendo da fundamentação filosófica do seu credo religioso departamentalizam o pós-morte em céu, inferno, purgatório, evolução por zonas espirituais etc. a fora essa polêmica, o certo é que todos morrem. Independente da existência, ou não da vida após a morte, os poetas gostam de descrever a viagem de pessoas famosas para o além.
José Pacheco foi quem primeiro se aventurou a descrever poeticamente a chegada de um morto no outro mundo. Escreveu “O debate de Lampião com São Pedro” e também “A chegada de Lampião no Inferno”, um dos maiores clássicos da nossa literatura popular. Para descrever as peripécias que o “Capitão Virgulino” aprontou no império de satanás, o poeta se valeu da ajuda da alma penada de um de tal “Pilão Deitado”, que se reivindica cabra de Lampião e que retornou dos cafundós do Além trazendo notícias do chefe. Posteriormente, Rodolfo Coelho Cavalcante, discordando frontalmente da narrativa do primeiro poeta sobre o destino do famigerado bandoleiro na vida além túmulo, escreve e publica “A chegada de Lampião no céu”. Outros poetas ainda se aventuraram a escrever a chegada de Lampião em outros locais espirituais, como o purgatório, porem sem o sucesso desses dois citados acima.
Lampião, pelo menos que eu saiba, foi um dos poucos mortos que foi descrito por um poeta chegando ao inferno. Geralmente os poetas escrevem seus versos narrando à chegada de personagens famosas ao céu, até porque, comercialmente, é mais fácil vender as narrativas de pessoas boas chegando ao paraíso, do que as más chegando ao reino das trevas. Nessa trilha, o poeta Manoel D´Almeida Filho escreveu “A chegada de Tancredo Neves no Céu”; Rouxinol do Rinaré, “A chegada de Chico Anísio no Céu”; Klévisson Viana, em parceria com João Gomes de Sá “A chegada de Michael Jackson no portão celestial” e recentemente novamente Klévisson Viana em parceria com o mestre Bulebule lançaram o folheto “A chegada de Ariano Suassuna no Céu”.
Homenagem mais do que justa ao poeta e dramaturgo paraibano, recentemente falecido. Caso eu esteja errado e exista vida além da vida, o mestre Suassuna está até o momento se deliciando lá nos aprazíveis banquinhos de praças lá do céu, com a leitura desse folheto, dando gargalhadas de suas peraltices na casa do Senhor, a partir da mente criativa de dois bons poetas. A homenagem não poderia ser diferente, tinha que ser em cordel. Ariano Vilar Suassuna, defensor ardoroso da cultura nordestina, construiu toda a sua obra tendo como base a cultura local e a literatura de cordel em especial. Sua principal, e mais conhecida peça teatral, “O Auto da Compadecida”, que foi sucesso estrondoso no cinema e na televisão nada mais é do que uma colcha de retalhos de várias histórias de folhetos de cordel. O próprio dramaturgo, em uma entrevista reproduzida em uma das edições da obra, afirma e cita as obras de Leandro Gomes de Barros que lhe serviram de base para escrever o auto. Quando questionado pelo entrevistador sobre a autoria das histórias ele responde: “Oxente! As histórias são do Leandro. Eu escrevi a peça”!

No texto teatral “Auto da Compadecida”, Ariano com maestria de gênio, colocou João Grilo, o anti-herói do folclore nordestino para viver situações da narrativa poética de três folhetos de Leandro Gomes de Barros: “O dinheiro ou o testamento do cachorro”, “O cavalo que defecava dinheiro” e “A história de João da cruz”. O primeiro é um folheto de oito páginas em que Leandro, no início do século, tece severas críticas ao poder econômico. Conta à história do falecimento do cachorro de estimação de um rico inglês. O súdito da rainha tratava o cachorro a “pão de ló” e com a morte deste, não quer que urubu brasileiro se alimente de seus restos mortais. A única maneira de evitar que o animal vire carniça é dar-lhe um enterro cristão e aí vem à recusa do padre, o convencimento através de quatro contos de Réis e a partilha do suborno Padre com o Bispo.
O segundo texto, “O cavalo que defecava dinheiro” é a clássica peleja sertaneja do pobre astucioso e o rico ganancioso. No anedotário popular aparecem várias versões e cada uma colocam contendores diferentes. Em alguns os personagens são o “primo rico e o primo pobre”, em outros são irmão, amigos ou compadres, como no folheto de Leandro Gomes de Barros. Nessa história, um compadre muito pobre, porem astucioso, sabendo da ganância do seu compadre rico, resolve passar-lhe a perna lhe vendendo um cavalo velho sem serventia, totalmente estropiado, por dez vezes o seu valor real, com o argumento e provas cabais que o mesmo defeca dinheiro. O compadre rico, movido pela ganância, compra o dito cavalo e depois de vários dias percebe que foi tapeado e volta para tirar a desforra com o compadre pobre, porem esse já tem outro plano arquitetado de lhe vende uma rabeca que ressuscita os mortos.
No terceiro texto existe uma polêmica. Ariano Suassuna afirma que sua fonte é o texto “O preço da soberba”, atribuído ao poeta Severino Piruá de Lima. Existe outro clássico de autoria de Leandro Gomes de Barros intitulado “História de João da Cruz” com o mesmo enredo. Os pesquisadores seguem o pensamento de Ariano, eu, no entanto, acho que o texto de Leandro é a fonte principal. Polêmica a parte, o importante é dizer que “O preço da soberba” e “A história de João da Cruz” são uma única história, tem o mesmo enredo, baseadas no mesmo fato e aqui chegou da Península Ibérica. A fonte principal é a história do Santo do catolicismo espanhol, São João da Cruz. Conta à tradição que João da Cruz era um homem muito rico e soberbo e constantemente blasfemava, alegando que sua riqueza era produto do seu esforço e não dependia em nada da intervenção divina. Certo dia vem o arrependimento e a conversão ao cristianismo e sua vida passa a ser dedicada à caridade. Ao morrer chega ao céu e sua alma é preterida pelo “tinhoso”. Jesus coloca na balança da justiça divina os pecados e as boas ações de João e os pecados prevalecem. João da Cruz, desesperado, pede a intervenção de nossa Senhora, “a compadecida”, que faz o papel de sua advogada. O poeta Rodolfo Coelho Cavalcante, já na segunda metade do século 20, aproveitando esse enredo, também escreveu “A chegada de Lampião no céu”.
Foi da junção desses três contos populares, narrados por Leandro Gomes de Barros e outros poetas que o Mestre Ariano Suassuna escreveu sua principal obra, tendo como personagem central o amarelinho João Grilo. Por isso é que foi muito justa a homenagem dos poetas Klévisson Viana e Bule bule, descrevendo a chegada Ariano no céu. O texto da dupla é leve e engraçado. Conta que Jesus querendo montar um espetáculo no céu, manda buscar Ariano. Ordena que a morte trouxesse o escritor nordestino membro da ABL. A morte erra e trás João Ubaldo. Identificado o equívoco ela retorna e leva o Mestre Ariano sem tocar em um único fio de cabelo. Simplesmente mostra-lhe uma placa com os dizeres “Wel come Ariano”. Ele, que não suportava estrangeirismos, de tanta raiva tem um piripaque e vai bater na porta do céu. A literatura de cordel, com esse folheto primoroso de Mestre Bule bule e Klévisson Viana fica revigorada nas suas peripécias no além túmulo e mostra que enredos e temas seculares permanecem super atualizados.
 Vida longa ao cordel, seus poetas e seus leitores!

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