Moradores de Barras, no Piauí, foram atraídos por promessas de emprego, mas trabalharam como escravos em fazenda do Pará |
Governo terá de pagar quase 5 milhões de dólares para
128 trabalhadores rurais que foram escravizados na Fazenda Brasil Verde, no
Pará
Regiane Oliveira
Luis Sicinato de Menezes, 64, mais conhecido como Luis
Doca, é um trabalhador rural aposentado, da cidade de Barras, no interior
Piauí, a 130 quilômetros da capital, Teresina. Em seus 30 anos como peão de
trecho (o famoso bico, que quer dizer trabalho temporário), andando de fazenda
em fazenda no Norte do país, ele trabalhou no corte da juquira, uma mata rasa,
considerada um estorvo para a expansão da agricultura e criação de gado. O
trabalhador vive por um código de honra: um homem sempre cumpre sua palavra e
nunca foge. Demorou muito para que ele entendesse que aqueles que buscavam seus
serviços não compartilhavam de seus valores. A vida de Luís Doca é marcada por
aliciamentos, ameaças de morte, trabalhos em situações desumanas,
frequentemente sem receber. Não foram poucas as vezes em que voltou para casa
sem nada. Só com a vida. "Antes, eu não entendia. Mas aí meti na cabeça.
Todos os trabalhos que fiz na vida eram trabalho escravo", conta.
Luis Doca faz parte de um grupo de 128 trabalhadores
rurais submetidos ao trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde, localizada em
Sapucaia, sul do Pará, que processou o Brasil na Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH). E ganhou. No primeiro caso sobre escravidão e tráfico
de pessoas decidido pela Corte, o Estado Brasileiro terá que indenizar os
trabalhadores em quase 5 milhões de dólares por conivência com o trabalho
escravo na Fazenda Brasil Verde, pertencente ao Grupo Irmãos Quagliato, um dos
maiores criadores de gados do Norte do país.
Eram escravos no
Brasil e não sabiam. Agora o mundo todo ficou sabendo
Luis Doca, agricultor que foi escravizado pela Fazenda
Brasil Verde REGIANE OLIVEIRA
Luis Doca, agricultor que foi escravizado pela Fazenda Brasil Verde. Foto: Regiane Oliveira |
Desde 1940, o artigo 149 do Código Penal Brasileiro
prevê pena de dois a oito anos para quem reduzir alguém à condição análoga à de
escravo. Em 2003, a lei foi ampliada, entrando outras disposições que tornam
mais amplo o combate a essa forma de exploração, como submeter alguém a
trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho, e
restrição da locomoção por dívida. Isso fez com que o país fosse reconhecido
internacionalmente com uma das legislações mais combativas do mundo.
No papel, então, estava tudo certo e adequado para
evitar abusos em um país cuja memória escravagista, que deveria ter acabado em
1888, ainda persiste. Na prática, a Fazenda Brasil Verde se utilizou de um
expediente visando o lucro em detrimento da dignidade de seus contratados. Ela
passou por 12 fiscalizações do Ministério do Trabalho, e em todas foram
encontradas irregularidades, que, em alguns casos, levaram ao resgate dos
trabalhadores. Eram casos de trabalhadores que dormiam em galpões, sem
eletricidade, camas ou armários. A alimentação era insuficiente, de péssima
qualidade e o material de trabalhado eram descontados de seus
"salários", virando uma dívida com os patrões, que os trabalhadores
não podiam pagar, num círculo vicioso interminável. Nessas condições, vários ficavam
doentes, sem receber atenção médica adequada.
Por muitos anos, o Estado Brasileiro esteve ciente dos
problemas, mas nunca condenou ninguém, nem foi capaz de prevenir outras
violações. A Fazenda Brasil Verde foi obrigada a pagar, no máximo, os valores
rescisórios dos trabalhadores resgatados. Tratam-se de compensações irrisórias.
Isso porque uma das características da escravidão contemporânea é que o
trabalhador é visto como uma mercadoria descartável, a ser usada por curto
período de tempo – três ou quatro meses –, e logo dispensado.
Chagas Diogo, fugir não era opção.foto de REGIANE OLIVEIRA |
Na escravidão histórica do Brasil, o custo de conseguir
um escravo negro era alto, fazendo com que ele fosse considerado um
investimento a ser amortizado com o passar dos anos. Os 'novos' escravocratas
não precisam investir muito para conseguir mão de obra. Basta o boca a boca em
uma cidade pobre como Barras, com o anúncio de uma "oportunidade de
emprego", e vários trabalhadores farão fila para segui-los.Todos
compartilhando as mesmas características: homens entre 15 e 40 anos de idade,
em sua maioria negros ou pardos, oriundos dos estados mais pobres do país e sem
qualificação.
Essa realidade é seguida de perto pela Comissão
Pastoral da Terra (CPT), que juntamente com o Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (Cejil), identificou na repetição das violações na Fazenda Brasil
Verde uma chance de desmascarar essa cultura que ainda persiste no Brasil. As
entidades levaram dois anos levantando documentos e procurando os trabalhadores
prejudicados. Muitos que sofreram as violações não puderam ser encontrados. O
caso foi levado para a Comissão em 1998. O Estado Brasileiro tentou negociar e
pressionou muito para que o caso não chegasse à CIDH. Não conseguiu.
Foi a ausência de efetividade na aplicação da lei para
proteger os direitos dos trabalhadores, punir os responsáveis e reparar os
danos, que fez com que o caso fosse aceito na CIDH em 2015. Uma vez na Corte, o
Estado Brasileiro se tornou réu. Isso porque o sistema de direitos humanos foi
criado para punir abusos de Estados contra seus cidadãos. Apesar da legislação
internacional reconhecer que a Fazenda, mesmo sendo uma entidade jurídica, é
capaz de violar os direitos humanos, ela não pode ser julgada em âmbito
internacional. Está em discussão na Organização das Nações Unidas um tratado
sobre empresas e direitos humanos que pode mudar esse cenário e tornar mais
difícil que as empresas ficarem impunes.
BARRAS, UM POLO DE EXPORTAÇÃO DE MIGRANTES
Dona moça, luta para não ter mais medo. Foto de REGIANE OLIVEIRA |
A cidade de Barras é um conhecido polo de exportação de
trabalhadores para outros Estados do país. Pouca oportunidade de emprego,
aliada à baixa qualificação dos trabalhadores locais, muitos analfabetos, até
hoje atrai aliciadores de fazendeiros e empreiteiros da construção, em busca de
mão de obra barata. O esquema é sempre o mesmo. É o gato quem faz as promessas
de quanto vai ganhar e qual o trabalho esperado. Mas Chagas Diogo afirma que
alerta aos mais novos: "Hoje em dia para a pessoa sair de casa, tem que
saber com quem vai sair. Saber para onde vai. Não dá para sair à toa, só com
promessas."
Na cidade, parece que todo mundo conhece alguém que
desapareceu ao trabalhar de peão de trecho nas fazendas. É o caso de Dona Moça,
esposa de Luis Doca. Muito ativa na busca de reparação, ela perdeu o primeiro
marido e seu filho mais velho para as "fazendas". Ela não sabe o que
realmente aconteceu. Eles saíram atrás de um "gato", com a promessa
de trabalho, e nunca mais voltaram. O medo fez com que ela nunca procurasse a
polícia. E ela não é um caso isolado. "Aqui é assim, a pessoa sai para trabalhar
e não volta. Não sabemos onde fica a fazenda. E a gente tem até medo de ir
procurar. E são muitos... muitos os que desaparecem e nunca mais voltam."
Para Dona Moça a reparação tem uma função muito
importante para os trabalhadores, a de mostrar que eles podem desafiar essa
realidade e buscar justiça: "O destino dos pobres tem sido ter medo de
tudo. Medo de que algo vai ser complicado, medo de denunciar, medo de estar em
perigo. Isso tem que mudar", afirma.
Relatos de uma vida de escravo
Luis Doca fez parte da última turma resgatada, em 2000.
Sua narrativa por vezes parece saída de um livro de história do século XIX.
Após serem aliciados pelo "gato", um capataz da fazenda, eles
viajaram para o Pará de ônibus, apenas com a promessa do que viriam a receber.
Uma vez na fazenda, os trabalhadores não têm a opção de desistir ou até mesmo
abandonar o emprego, como em uma contratação regular. Assim como outros
trabalhadores, Luis Doca explica em seus relatos, que para sair da fazenda é só
fugindo, um ato de resistência comum à escravidão histórica. Assim como no
passado, a pena pela fuga é a ameaça de tortura ou morte, explica.
Francisco das Chagas Diogo, 70, outro trabalhador que
foi resgatado na Fazenda Brasil Verde, contou que a promessa do gato era que,
após 15 dias na fazenda, ele voltaria para Barras levando um dinheiro para as
famílias. Mas isso não aconteceu. Eles foram deixados no meio da floresta, em
situação precária. O trabalho começava antes de amanhecer e ia até o cair da
noite. Sem descanso, ou eram chamados de preguiçosos. Para comer um pouco
melhor, tinham que matar capivaras. E para ele, fugir não era opção. "Lá
tinha muito pistoleiro, o sujeito que fugisse, iria morrer. Aí, tinha que
aguentar", conta Chagas Diogo.
Dois trabalhadores não aguentaram e fugiram em busca de
ajuda. Foram três dias em meio da mata até conseguir chegar a alguém que os
levasse até a polícia mais perto. Eles voltaram à fazenda com os fiscais do
Ministério do Trabalho. Só assim, os trabalhadores puderam escolher deixar o
local. O relatório da fiscalização mostrou os detalhes de como eles viviam em
situação degradante. "A gente comia nos capacetes [de construção]. Se você
não tivesse um capacete tinha que esperar os outros comerem, para usar no
capacete de alguém", conta Luis Doca.
O custo de ser conivente com a escravidão
A Corte reconheceu na sentença que o Brasil violou
direitos estabelecidos em vários artigos da Convenção Americana de Direitos
Humanos, como a proibição da escravidão e servidão; garantia a integridade
física, psíquica e moral da pessoa; e direito à liberdade pessoal.
E apesar de a dignidade humana não ter preço, a
conivência do Estado com a escravização de trabalhadores em pleno regime
democrático tem seu custo. A CIDH calculou um valor de reparação inédito. Cada
um dos 85 trabalhadores submetidos ao trabalho escravo, que foram resgatados
durante a fiscalização na fazenda em 15 de março de 2000, vão receber como
reparação 40.000 dólares (cerca de 120.000 reais). Outros 43 trabalhadores
resgatados durante uma fiscalização em 23 de abril de 1997 receberão 30.000
dólares (cerca de 90.000 reais). É pouco, se considerado o sofrimento e
aflições que os trabalhadores passaram na condição análoga à de escravo.
“Eu tinha esperança de ganhar algo, mas era mais um
sonho”, afirma Luis Doca. O trabalhador tem planos para o dinheiro. “Já matutei
um bocado de coisa, tenho um terreno e quero crescê-lo, ter uma sementinha de
gado. Arrumar minha casa, puxar energia para a casinha do terreno. Pagar minhas
dívidas. E enquanto esses braços aqui e os da mulher tiverem forças, vamos
continuar trabalhando.” Chagas Diogo também vai continuar trabalhando. Seu
sonho é comprar um pedaço de terra, e deixar de ser rendeiro. “Quero garantir
emprego para meus filhos”, conta.
FONTE. EL PAÍS
Regiane
Oliveira, jornalista e historiadora, visitou Barras, no Piauí,
em março de 2016 para conhecer os trabalhadores
da Fazenda Brasil Verde e fazer a pesquisa de sua dissertação de
mestrado em Direitos Humanos, intitulada Depois da Liberdade - o direito a
reparação efetiva pelas vozes de pessoas submetidas à escravidão contemporânea.
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