Talvez o crime de Campinas seja
justamente sobre a manutenção das relações de poder, do status quo, em um
momento em que as disputas de narrativas sobre os casos de feminicídio trazem à
tona crimes perversos que – é importante ressaltar – acontecem diariamente,
embora nem sempre sejam tão noticiados.
Por Daniela
Lima .
Quando um
caso de violência contra mulheres chega à grande imprensa, o debate é orientado
quase sempre pela mesma pergunta: qual a motivação do crime? Mas o que é que
motiva a formulação dessa pergunta? Deixando de lado o procedimento jurídico
que levará em consideração as motivações do crime dentro de um protocolo de
investigação policial, o senso-comum e os consumidores de notícias em geral
desejam encontrar uma explicação
individual, específica e subjetiva. E a pergunta pela motivação do crime atende
a essa necessidade. Muitos dizem: “era louco”, “era um monstro”, “não era
humano”.
Quando se
diz que alguém que assassina brutalmente uma mulher o fez simplesmente porque
era “louco” se reforça o estigma do louco perigoso e, ao mesmo tempo, se isenta
o assassino de responsabilidade. É uma forma de dizer: “ele não sabia o que
estava fazendo”. Já a ideia de “monstro” pretende colocar os casos de violência
contra as mulheres como exceção, coisa que aconteceria fora do mundo, realizada
unicamente por monstros desumanos.
O
assassino de Campinas não é um monstro: ele é assustadoramente humano, capaz de
um mal naturalizado e banalizado que vitima mulheres todos os dias. O ponto
aqui é trazer de volta esses casos para o mundo, entendendo não se tratarem de
exceções. Fugir da perspectiva dominante que invariavelmente termina por
justificar a violência culpando a vítima.
O que faz
a chacina de Campinas ser um caso emblemático em relação aos esforços de
procurar possíveis justificativas para o injustificável é que o assassino
deixou uma carta. Existe então um sem número de possibilidades e de
psicologismos que poderiam vir à tona para evitar que se diga: esse caso não é
exceção. Criam-se paredes de contenção para evitar que se fale sobre misoginia.
O
assassino antecipa a acusação de misoginia na carta, estabelecendo as regras
dos jogos de verdade e falsas justificativas que o fariam escapar da acusação.
É a carta que deve ser lida, escrutinada, interpretada – e não a sociedade e as
suas relações de poder.
Sidnei
Ramis de Araújo diz na carta que não odiava mulheres, ou seja, que não era
misógino, que odiava tão somente as “vadias” – curiosamente todas as mulheres
da família de sua ex-companheira eram vistas como “vadias”. Neste ponto, o
assassino reforça a ideia do senso comum de que toda violência pode ser
justificada por meio da desumanização. É sob a ideia perversa de que “vadias”
não são humanas e que, portanto, podem sofrer toda forma de violência que a
misoginia se esconde e se sustenta.
A carta
se inicia com Ramis reivindicando para si a identidade de um “homem de bem”,
assim como aconteceu com os assassinos de Luiz Carlos Ruas. Essa repetição nos
leva a perguntar: o que define um “homem de bem”? Talvez o “homem de bem”,
neste contexto, seja aquele que trabalhe para a manutenção das relações de
dominação de uns (sempre os mesmos) sobre outros (também sempre os mesmos), ou
seja, aquele que use a violência para a manutenção do status quo.
O
assassino revela também um ódio ao que ele chama de “sistema feminista” – um
delírio absoluto em um país cuja taxa de feminicídios é a quinta maior do
mundo, mas são tempos vertiginosos em que o absurdo se estabelece e se enraíza
como a verdade do senso comum.
Essa
visão do feminismo parece retomar a famosa frase de Rebecca West: “eu mesma
nunca consegui saber direito o que é feminismo. Só sei que me chamam de
feminista quando expresso sentimentos diferentes de um capacho”. Fica expresso
na carta um ódio às feministas, que, no fim das contas, são todas as mulheres
que, como diz West, expressam sentimentos diferentes de um capacho. Pior: um
ódio contra todas as mulheres, independentemente de como se expressem.
Há ainda
a questão ética envolvida na publicação da carta do assassino, pois além da
exploração do crime como espetáculo, o texto da carta traz em diversos momentos
incitações de violência contra “vadias” – e, como dito acima, “vadias” são
todas as mulheres. Ramis incita a violência misógina retomando o antigo
discurso da “legítima defesa da honra”, que sustentou por décadas um discurso
jurídico para inocentar “homens de bem” que cometiam femicídios. Destaco este
trecho da carta:
“A vadia
foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer o mesmo com os filhos, agora os
pais quem irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias.”
É preciso
analisar aqui o que leva a imprensa a publicar o discurso de ódio contido nessa
carta, sobretudo em um momento em que a mesma parece reproduz e reforça uma
suposta divisão entre as mulheres “de boa índole”, “belas, recatadas e do lar”
e as “vadias”. Os dois discursos se imbricam em uma perigosa e perversa
abertura para justificar o feminicídio.
A partir
daí é que precisamos prosseguir o debate sobre as múltiplas tecnologias do
poder que naturalizam o feminicídio por meio de separações, tais quais
“mulheres de bem” e “vadias”. Heleieth Saffioti nos diz: “não obstante a força
de todas as tecnologias sociais, especialmente as de gênero, […] a violência
ainda é necessária para manter o status quo”*. Talvez o crime de Campinas seja
justamente sobre a manutenção das relações de poder, do status quo, em um
momento em que as disputas de narrativas sobre os casos de feminicídio trazem à
tona crimes perversos que – é importante ressaltar – acontecem diariamente,
embora nem sempre sejam tão noticiados.
*
SAFFIOTTI, Heileieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Expressão
Popular, 2015.
Daniela Lima é escritora e ativista. Autora de
Anatomia (2012), Sem Importância Coletiva (2014) e Sem Corpo Próprio (2015 – em
andamento). Teve contos traduzidos para a revista The Buenos Aires Review
(2013) e foi finalista do prêmio literário Exercícios Urbanos (2008) na
categoria contos. Colaborou para diversas revistas e sites, entre eles Blog do
Instituto Moreira Salles, Carta Capital, Margem Esquerda, Territórios
Transversais e Pesquisa Fapesp. É comentarista da Rádio Manchete, biógrafa da
escritora Maura Lopes Cançado e fundadora do coletivo feminista Jandira (2014).
Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente.
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