Notas críticas sobre uma clássica do feminismo
Nota prévia: O texto que segue é a versão escrita de
uma apresentação efectuada em 10 de Novembro 2011 no “Institut für
vergleichende Irrelevanz [Instituto da Irrelevância Comparada]”
(Frankfurt/Main).
Por Roswitha Scholz
Introdução
O livro de Simone de Beauvoir O Segundo Sexo há muito
tempo que não desempenha quase nenhum papel na teoria feminista. Mas nos
últimos tempos De Beauvoir voltou a surgir nas obras panorâmicas de clássicas
do feminismo e agora têm-lhe sido dedicados cada vez mais reuniões e eventos, a
ela e à sua teoria. Também encontra menção frequente nas páginas culturais.
Isto, provavelmente, tem a ver não apenas com as datas comemorativas habituais,
no seu centésimo aniversário em 2008 e nos 25 anos da sua morte em 2011, mas
dever-se-á não em último lugar ao facto de os estudos feministas e de género se
tornarem auto-reflexivos na situação de crise actual.
Ainda na década de 1970, particularmente um feminismo
da igualdade tinha-se referido a De Beauvoir com o slogan: “Ninguém nasce
mulher, faz-se mulher”. Logo, porém, o feminismo da diferença a acusou de
aplicar às mulheres os critérios de normalidade masculinos. Finalmente, na
década de 1990 foi-lhe censurado por um feminismo desconstrutivista estar presa
a um pensamento dualista e operar uma nova produção de bissexualidade apesar de
todas as críticas das relações de género.
Entrámos agora num tempo de balanço/reflexão: O que vem
depois da igualdade, da diferença e da desconstrução? Até onde vai a
investigação sobre o género, depois de, por um lado, ser posta em questão e,
por outro, se postular ser inevitável mantê-la ainda de pé? Nestes tempos de
incerteza também se volta às clássicas, como De Beauvoir. No entanto por aí não
se deve entrar em território novo; daí não surgem desejos de transcendência do
pensamento existente nem do anterior. A teoria deve permanecer no habitual
quadro de referência imanente. Assim se tenta desesperadamente tornar
compatível o “queer” com as exigências de um feminismo materialista. É
justamente neste contexto que ocorre o recurso a De Beauvoir, como pretendo
mostrar sucintamente a seguir.
Simone de beauvoir |
Na minha apresentação há três questões: primeiro, o
significado objectivo de De Beauvoir no contexto de uma crítica da socialização
capitalista da dissociação e do valor; em segundo lugar, concordâncias e
demarcações em relação a De Beauvoir a partir da perspectiva por mim
representada da crítica da dissociação e do valor hoje; e, em terceiro lugar,
as razões pelas quais De Beauvoir é agora de novo retirada do esquecimento e de
que maneira. A meu ver, trata-se sobretudo de, no contexto de uma dialéctica
sujeito-objecto historicamente específica do capitalismo, evidenciar os aspectos
do objecto de certo modo autonomizados face ao sujeito, na sua ligação própria
que hoje é em grande parte negligenciada. A solidão do sujeito, um importante
ponto de referência do existencialismo (incluindo Sartre) na esteira de uma
problemática recepção de Heidegger, é na minha opinião o resultado da
socialização capitalista da dissociação e do valor, não constituindo o seu
pressuposto a “existência” pensada a-historicamente de modo ontológico.
Primeiro eu gostaria de esboçar novamente algumas
ideias fundamentais de O Segundo Sexo. O pensamento de De Beauvoir está
enraizado no existencialismo, como se sabe, especialmente no existencialismo de
Sartre; um pensamento que ela ajudou a construir com base num diálogo ao longo
da vida. Ponto-chave aqui é que o homem está condenado à “liberdade” por “ser
lançado [Geworfenheit]” no mundo. Ele precisa de se inventar e é totalmente
responsável. A dependência de condições externas para a sua decisão é,
portanto, considerada como um mero subterfúgio. Não há nenhuma essência humana
pressuposta, o homem e a sua existência coincidem no fundo com a sua “acção”,
na qual ele se transcende a si mesmo; assim na acção ele vai além da sua
existência. Isto vale não só para os indivíduos, mas para toda a humanidade.
Esta ideia está também subjacente a O Segundo Sexo. O
homem é aí considerado como sujeito, a mulher como o Outro/o particular. A
categoria Outro marca a existência em geral. No entanto, se ela é comummente
caracterizada pela reciprocidade, isso não acontece na relação entre os sexos.
As mulheres consentem nesta relação unilateral. Sobretudo por razões de
conveniência, portanto para fugir à responsabilidade, permanecem na imanência
patriarcal. Ora, apesar de a opinião de De Beauvoir ser: “Ninguém nasce mulher,
faz-se mulher” (uma frase frequentemente citada), ela balança entre as
explicações biológicas e sociais a que submete a sua visão do mundo
existencialista. Biologia para ela é principalmente lastro que é preciso jogar
fora se a mulher quiser chegar à transcendência. Por conseguinte ela apoiou
decididamente campanhas pelo direito ao aborto e viu o amor lésbico como uma
alternativa à relação heterossexual, porque o acto sexual heterossexual
“representa sempre uma espécie de violação”. A questão decisiva para ela, no
entanto, não é a prática sexual como tal, mas a exclusividade compulsiva da
heterossexualidade (De Beauvoir, 2008, em resumo: Hagemann-White, 1992).
Para o movimento de mulheres na esteira de 1968 O
Segundo Sexo foi uma espécie de Bíblia, como já foi dito muitas vezes. Isto é
verdade para protagonistas como Sulamith Firestone e Alice Schwarzer, passando
por Contra a nossa vontade (um livro anti-violação) de Susan Brownmiller, até
Christina Thürmer-Rohr com sua tese da “cumplicidade”, que até hoje funciona
como mera contraposição ao “feminismo da vítima”, em vez de ver que ambas as
variantes do feminismo (o lado da vítima e o da cumplicidade) têm basicamente
um fundamento existencialista. Ainda no feminismo da diferença, seja o de
Irigaray ou o do chamado grupo de Bielefeld, o esboço patriarcal da mulher como
ideia utópica é de certo modo desviado e pensado já sempre como transcendente,
agora de facto a partir do próprio lado feminino – na realidade também já
sempre imanente. Precisamente Irigaray e De Beauvoir devem ser consideradas
complementares, na medida em que em De Beauvoir a mulher é definida como o
Outro deficitário do sujeito masculino, enquanto em Irigaray, pelo contrário, o
Outro oculto feminino é que é o autêntico, ao qual é preciso mostrar respeito.
Sobre o significado do existencialismo na socialização
capitalista da dissociação e do valor.
De Beauvoir e Sartre – bem como outros teóricos –
efectuaram mudanças ao longo do seu trabalho. A uma fase fenomenológica e
existencialista em sentido estrito seguiu-se o recurso à teoria de Marx desde a
invasão nazi da França. A formação do existencialismo francês é muitas vezes
posta em ligação com isto e com a necessidade de resistência. Esta é,
obviamente, uma diferença com Heidegger, a quem Sartre e De Beauvoir também se
referem. A filosofia de Heidegger evoluiu a partir de um fundo social muito
diferente na Alemanha. A sua filosofia existencialista articulou o sentimento
básico da populaça de classe média nacional-socialista. De Beauvoir, pelo contrário,
inclui também ideias marxistas na sua teoria. Isso, no entanto, não tanto em
relação às causas socio-económicas da opressão das mulheres, mas sim, como é
usual numa visão existencialista-fenomenológica, com uma intenção mais
descritiva, a fim de determinar O Segundo Sexo com fundamento em primeiro lugar
existencialista.
Embora o desenvolvimento teórico de Sartre e De
Beauvoir tenha passado por metamorfoses, eu gostaria de referir aqui brevemente
a mensagem essencial do ensaio de Sartre Materialismo e Revolução, para depois
o confrontar com uma figura argumentativa fundamental em História e Consciência
de Classe de Lukács. Quero assim mostrar o contraste entre o existencialismo e
uma crítica do fetichismo social na dimensão fundamental da forma (e, neste
contexto, numa dialéctica de sujeito e objecto, como referido) na perspectiva
da crítica da dissociação e do valor. Um importante incentivo para o efeito
foi-me dado por Winfried Dallmayr com o seu ensaio de 1977 Phänomenologie und
Marxismus in geschichtlicher Perspektive [A fenomenologia e o marxismo numa
perspectiva histórica].
O materialismo vulgar não escapa à crítica de Sartre:
“Para eliminar a subjectividade, o materialista declara-se ele próprio objecto;
o objecto da pesquisa científica. Mas, logo que a subjectividade é nivelada com
o mundo dos objectos, o materialista lança mão de um truque; em vez de se ver
como um objecto entre objectos e sob o controle da causalidade natural, arma-se
ele próprio em observador objectivo, alegando controlar a própria natureza como
ela é” (Sartre, citado em Dallmayr, 1977, p. 32). Segundo Sartre as estruturas
sociais são equiparadas a leis naturais no marxismo. Em vez disso, a seu ver o
marxismo devia ser associado com o existencialismo. Para ele, isso significa
que tem de ser abandonada uma posição materialista contemplativa. A sua preocupação,
pelo contrário, é a interacção do conhecimento com a prática, entendida de modo
existencialista, situação em que ele próprio volta a ligar prática com
“trabalho” em sentido ontológico, bem à maneira do marxismo tradicional. De
acordo com Sartre é no pensamento da classe dominante que assenta o marxismo
tradicional na forma de ideologia contemplativa materialista. O proletariado,
pelo contrário, estará predestinado a engajar-se, ainda que precise do
fundamento epistemológico e marxista.
A fenomenologia, o seu próprio existencialismo e um
esquematismo conceptual marxista são agora ligados em Sartre como se segue.
Exige-se uma teoria do conhecimento “que demonstre que a realidade humana é a
acção e que o tratamento activo do mundo coincide com a compreensão desse mundo
como ele é” (Sartre, citado em Dallmayr, 1977, 33). No entendimento truncado de
Sartre, o Ser, ou o Ser do entendimento marxista, a materialidade, acaba assim
por ser dissolvido na consciência entendida de modo existencialista, e de facto
com a construção da possibilidade de um projecto completamente diferente de
sociedade a partir do proletariado. Por isso o marxismo teria de ser uma teoria
da transcendência. Dallmayr comentou a propósito que Sartre “mesmo no período
pós-guerra (permaneceu) basicamente fiel ao conceito radical de liberdade de
seus primeiros escritos, embora o conceito fosse agora mediado com mais ênfase
pela realidade, através da acentuação do trabalho. A introdução deste conceito
de liberdade no marxismo tem no entanto consequências graves – consequências
que Sartre se abstém de mencionar. Tal como as primeiras obras fenomenológicas
eram marcadas pela oposição entre a consciência e o mundo das coisas, também
agora a práxis revolucionária só faz sentido no contexto da exploração
permanente; tal como em O Ser e o Nada a consciência enquanto ‘para si’ nunca
pôde fundir-se com o ‘em si’ apesar dos esforços diligentes, também em
Materialismo e Revolução a luta de classes nunca pode esmorecer. A perspectiva
histórica de Sartre visa, portanto, não tanto uma sociedade sem classes, como
uma alternância de diferentes variantes de sadismo e masoquismo sociais. Os
seus escritos posteriores terão talvez atenuado este dilema, mas nunca o
resolveram” (Dallmayr, ob. cit, p. 34 sg.). De algum modo, deve haver sempre
alguma coisa “para lá da qual se deve ir”; isso pertence à concepção filosófica
sartreana em geral.
Do meu ponto de vista da crítica da dissociação e do
valor, Sartre permanece assim preso num pensamento ontológico e sobretudo num
insolúvel dualismo sujeito-objecto. Mesmo na sua ênfase marxista ele tem afinal
de tomar partido pelo agir existencialista, pelo projecto que no fundo é sempre
o da acção do trabalho. Dallmayr faz notar que Sartre, em comparação com o
ensaio de Lukács História e Consciência de Classe, “fica atrás em diversos
aspectos – por exemplo na ênfase individualista e no esquematismo conceptual”
(ibid., p. 35). Dallmayr, no entanto, não concretiza, especialmente no que diz
respeito à forma social, a forma do valor ou forma da dissociação-valor, como
eu pretendo tentar fazer agora de modo necessariamente breve, usando em
primeiro lugar uma ideia central de Lukács.
Também Lukács é certamente um apologista da luta de
classes e do trabalho na acepção do marxismo tradicional. No entanto, no seu
famoso ensaio sobre a reificação (1923/1967), ele foi o primeiro a tematizar
detalhadamente o problema da forma da mercadoria fetichista e abrangente, que
transcende tanto o capitalista como o proletário e que não se pode compreender
no sentido de uma contradição barata imanentemente funcional. Nessa medida, o
objecto não pode ser dissolvido no sujeito, como acaba por acontecer em Sartre,
mas são necessárias mediações que se contraponham ao tradicional esquema
base-superstrutura em termos de uma simples teoria do reflexo. Central aqui é a
perspectiva histórica. Assim escreve Lukács, por exemplo: “Não se pode esquecer
(…) que imediatidade e mediação são elas próprias momentos dum processo
dialéctico, que cada grau do Ser (e da atitude de compreensão a seu respeito)
tem a sua imediatidade no sentido da fenomenologia (de Hegel, R.S.), onde nós,
face ao objecto imediatamente dado, temos ‘de nos comportar de modo igualmente
imediato ou receptivo, ou seja, não modificando nada nele, na forma como ele se
apresenta’. O ir além da imediatidade só pode ser a génese, a ‘criação’ do
objecto. Porém, isto já pressupõe que todas as formas de mediação, nas quais e
através das quais se vai além da imediatidade da existência dos objectos dados,
SE REVELAM COMO PRINCÍPIOS ESTRUTURAIS DA CONSTRUÇÃO E TENDÊNCIAS REAIS DO
MOVIMENTO DOS PRÓPRIOS OBJECTOS, portanto que a génese do pensamento e a génese
histórica (ao contrário do que acontece em Hegel, R. S.) coincidem de acordo
com o princípio” (Lukács, 1967, p. 171, destaques no original).
Para Lukács, assim, já não se trata sempre de um
marxismo considerado objectivamente, mas ele vai em mediação dialéctica para lá
do dualismo notoriamente superficial do marxismo tradicional entre
materialismo/estruturas objectivas, por um lado, e subjectividade/consciência,
por outro. Ainda que ele ao mesmo tempo se apoie no proletariado como força
imanente, ele não está entregue à imediatidade na mesma medida que o
existencialismo em geral, pelo menos neste ensaio famoso. Para Sartre,
naturalmente, trata-se já sempre com Heidegger do homem abstracto no mundo, ou
seja, na verdade, do homem “existente” imediata e simplesmente na rua; a sua
filosofia não é concebível sem esse personagem e com ele torna-se imediatamente
“prática”. O seu conceito de totalidade, ou o seu conceito de totalidade
concreta como “totalidade sintética”, já tem sempre esta referência
“imediatista”, ainda tenha em vista toda a humanidade e a existência desta deva
ser superada a partir deste mesmo ponto de partida abstracto. Por isso em
Sartre e também em De Beauvoir o decisivo é verdadeiramente uma ideologia do
ser-afectado [Betroffenheitsideologie] tendo como pano de fundo uma
“existência” abstractamente colocada, que no fundo passa bem sem qualquer
referência fundamental a um mundo exterior social e historicamente constituído
em termos de constituição fetichista.
Para Sartre o existencialismo é um humanismo
(abstracto); o indivíduo em si, o “homem” no sentido da humanidade em geral, é
aqui agarrado em falsa imediatidade. Nas mulheres, devido à história
patriarcal, isto atinge talvez um terreno particularmente fértil, onde, no
entanto, é preciso dizer que esta afectação imediata na acepção do
existencialismo se torna um pouco piegas e tende a desaguar em pessimismo, como
acontece com De Beauvoir, com uma quase acusação “à mulher” que se dá por
satisfeita na imanência. O que é aqui objecto de acusação está incluído às
escondidas nas suas próprias premissas teóricas. Devido a isso a mulher pode
depois vergar-se às circunstâncias na imanência de modo sadomasoquista, como
testemunha a tese da cumplicidade de Thürmer-Rohr humildemente se confessando
existencialista, a qual não consegue localizar o problema estrutural e
objectivamente num contexto social total, também anteposto à mulher que
subjectivamente confessa a cumplicidade e carecendo realmente de ser criticado.
Relação de género e estrutura social
Tanto Sartre como Lukács no fundo tomam como ponto de
partida da sua análise o trabalho e o trabalhador. Mas enquanto Sartre à
maneira existencialista se refere necessariamente à base da imediatidade já
quase como pano de fundo filosófico, Lukács dá potencial crítico à forma social
no sentido de Marx. Isto pode ser usado potencialmente tanto no sentido de um
questionamento do trabalho abstracto, como princípio fundamental, quanto no
sentido de uma crítica da dissociação e do valor, que modifica novamente a
importância do trabalho abstracto. Seria necessário desenvolver a citação acima
de Lukács nos termos da crítica da dissociação e do valor para redefinir os
“princípios estruturais da construção e tendências reais do movimento” que vão
para lá da imediatidade da existência como formas de mediação. Só posso esboçar
isso aqui em traços largos.
A crítica da dissociação e do valor, como é sabido,
parte do princípio de que as actividades reprodutivas definidas como femininas
(trabalho doméstico, “amor”, cuidar, tratar), mas também atitudes
correspondentes (por exemplo, solicitude) e qualidades menosprezadas como
sensualidade, emoção, fraqueza de carácter e intelectual etc. são dissociadas
do valor e do trabalho abstracto, que também apenas se constituíram com o
capitalismo, e atribuídas às mulheres. Tais atribuições também caracterizam no
essencial o aspecto simbólico do patriarcado produtor de mercadorias, aspecto
esse que não pode ser apreendido através dos instrumentos conceptuais
marxistas. Do mesmo modo, em termos de psicologia social, a criança do sexo
masculino tem de se afastar da mãe e realizar uma dissociação/desvalorização do
feminino, a fim de poder desenvolver uma identidade masculina; enquanto a
criança feminina tem de se identificar com a mãe solícita para se tornar
“mulher”.
Ora a dissociação sexual é estabelecida necessariamente
em co-originariedade com o valor, pertence a ele e é o seu pressuposto tácito,
sem o qual ele não pode existir, sendo simultaneamente o seu Outro, mas como
tal não reconhecida por ele nem pelos seus “sujeitos”. Não se pode, portanto,
derivar um a partir de outro, mas ambos os momentos procedem e divergem um do
outro, assim justificando uma espiral progressiva historicamente dinâmica de
extracção da mais-valia, sem paralelo na história. Esta dissociação-valor como
princípio fundamental atravessa todas as esferas e domínios, de modo que não
pode ser dividida mecanicamente na oposição das esferas de privacidade e
publicidade, de produção e reprodução. Embora as mulheres sejam hoje
“duplamente socializadas”, sendo consideradas igualmente responsáveis pela
família e pela profissão, como diz Becker-Schmidt, estando em grande parte
integradas na sociedade oficial, elas continuam a ser as principais
responsáveis pela casa e pelos filhos, ao contrário dos homens, ganham menos
que os homens, embora os superem no nível de educação, e têm de lutar mais para
alcançar os níveis superiores. Mesmo na actual invocação de quotas assoma
sobretudo uma imaginação patriarcal tradicional, em que a mulher é declarada
“mulher dos escombros nata” do social, competente para tudo, quando o patriarcado
produtor de mercadorias está caindo aos pedaços. Neste contexto também poderia
ser tematizado um inconsciente social androcêntrico que ainda hoje possibilita
a relação patriarcal de produção de mercadorias.
“A mulher”, portanto, no tecido material, da psicologia
social e dos símbolos culturais da dissociação-valor como princípio
fundamental, defronta tanto a imediatidade como o contexto total mediado de um
modo diferente do que aparece em De Beauvoir, que transforma a “existência”
abstracta em origem socialmente indeterminada, quando escreve, oscilando entre
a relação biológica e a sua relativização: “É portanto, à luz de um contexto
ontológico, económico, social e psicológico que teremos de esclarecer os dados
da biologia. A sujeição da mulher à espécie, os limites de suas capacidades
individuais são factos de extrema importância; o corpo da mulher é um dos
elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo. Mas não é ele
tampouco que basta para a definir. Ele só tem realidade vivida enquanto assumido
pela consciência através das acções e no seio de uma sociedade; a biologia não
basta para fornecer uma resposta à pergunta que nos preocupa: por que a mulher
é o Outro?” (Simone de Beauvoir, Das andere Geschlecht, 2008, [O segundo sexo:
2. A experiência vivida, S. Paulo, 1967] destaque no original). A abstracção
a-histórica do ponto de partida e a indeterminação a ela associada do social
apenas permitem a De Beauvoir compreender insuficientemente as projecções no
biológico.
No entanto, os seus textos também pertencem aos
pressupostos teóricos da crítica da dissociação e do valor, que de facto define
a dissociação do feminino como o “Outro do valor”, assim assumindo plenamente
uma ideia fundamental de De Beauvoir. O conceito de Outro em referência à
relação de género, contudo, não permanece na imediatidade existencial, por
assim dizer no ar, mas é classificado na constituição histórica específica do
capital e do seu contexto processual-estrutural, de modo que também já não se
trata apenas da relação de género como tal, mas sim da “construção estrutural”
da relação social fetichista como um todo, com base na dissociação-valor como
princípio fundamental.
Semelhanças com De Beauvoir aqui são que o homem se
apresenta como o sujeito (universal) e a mulher como o particular na realidade
patriarcal capitalista, assim sendo constituídas as respectivas hierarquias de
valorização. Isto naturalmente também diz respeito à relação entre produção
oficial (na formulação por mim representada concebida com Marx como trabalho
abstracto) e “trabalho doméstico” como actividade complementar, para determinar
a universalidade masculina e a particularidade feminina. A crítica da
dissociação e do valor partilha também com De Beauvoir a radical crítica e
recusa do papel da mulher; e hoje também do desaforo que pretende que ela deva
ser responsável tanto pela família como pela profissão, para colocar no mundo
filhos de classe média perfeitos e fortes para o trabalho na pós-pós-sociedade.
Além disso, Simone de Beauvoir encontra-se também com a teoria da dissociação e
do valor no facto de que a heterossexualidade compulsiva é posta em causa, sem
por isso se negar a existência de um corpo sexual em geral; mesmo se De
Beauvoir ainda assume parcialmente fundamentos biológicos falsamente
ontológicos, que foram tornados completamente inaceitáveis por um
construtivismo também falsamente radical.
A crítica da dissociação e do valor concorda
decididamente com De Beauvoir em que a relação de género existente tem de ser
tratada como hierárquica, agora como antes; mas sempre reconduzindo à
determinação da forma social específica e não dela separada de modo
abstractamente existencialista. E tem ainda em comum com a crítica de De
Beauvoir uma clara oposição ao pensamento do desconstrutivismo dominante que
escamoteia sistematicamente as hierarquias rígidas. Por fim, a crítica da
dissociação e do valor critica também com De Beauvoir uma perspectiva da
diferença feminista clássica, embora não no contexto de um pensamento da
igualdade, mas na medida em que ambiciona suplantar por igual a igualdade
burguesa abstracta, a diferença biologista e a desconstrução afirmativa
pós-moderna.
Relação de género e história
Simone de Beauvoir é a primeira na história moderna a
apresentar como mulher uma grande análise sistemática da relação de género,
embora em sua fundamentação existencialista que a impossibilita de situar-se
historicamente no processo de desenvolvimento capitalista. Ela também faz a
revisão dos poucos pensadores feministas homens que tinha havido na história.
Não surpreende que a sua perspectiva esteja a ganhar novas potencialidades. Nas
últimas décadas as mulheres não podem permitir-se nem sequer em pensamento ser
apenas donas de casa. Elas hoje devem tornar-se competentes para tudo,
justamente no sentido de mulheres dos escombros, até perante a desvalorização
dos símbolos sexuais, quando os homens já não o conseguem por causa da
obsolescência do trabalho abstracto. Neste aspecto sem dúvida que Andrea Truman
tem razão na sua crítica à fixação no trabalho e ao apontar em De Beauvoir uma
ideia de transcendência justamente em relação a isso.
Crucial para uma compreensão adequada do
desenvolvimento histórico moderno (e pós-moderno) é a estrutura da relação de
dissociação e valor, mesmo que essa relação não exista independentemente das
acções dos indivíduos; também em Marx o contexto fetichista autonomizado é
criado e feito pelos seres humanos, ainda que inconscientemente. Do ponto de
vista da crítica da dissociação e do valor orientada pelo processo histórico, a
recepção de De Beauvoir foi de facto importante para o tratamento da
contradição numa determinada fase do capitalismo, ou seja, na passagem do
fordismo ao pós-fordismo.
A necessidade feminina de um certo tipo de
transcendência ainda não referida à totalidade do fetiche do capital acaba
assim involuntariamente por se adaptar ao desenvolvimento imanente. Susanne
Moser afirma: “O existencialismo antecipou muito daquilo que hoje está na
agenda: já não há qualquer ordem que determine o lugar que o indivíduo ocupa
pela vontade de Deus. É preciso lutar pelo lugar na sociedade... Nós próprios
temos de encontrar tudo, desde o emprego até ao significado das nossas vidas. O
que no tempo de De Beauvoir era discutido apenas teoricamente tornou-se agora
realidade” (2008).
Depois de uma celebração enfática de Simone de Beauvoir
nos anos de 1970 a avaliação dos seus pontos de vista mudou para o negativo, em
conformidade com uma fase de feminismo da diferença, na medida em que na
política queer e na teoria queer o género era agora considerado inteiramente
contingente e algumas, num círculo de interpretação simplista da teoria de
Judith Butler, hoje até pensam que se pode mudar de género como se muda de
roupa. Aqui género tem em comum com queer a ideia básica da atribuição de
significado e da “construção do género”, tendo como pano de fundo uma cada vez
maior hipostasiação acrítica da cultura e da linguagem contra a forma
capitalista.
De Beauvoir é aqui acusada de reificação da
bissexualidade. Butler escreve: “A construção discursiva do ‘corpo’ e a sua
separação da ‘liberdade’ em Beauvoir não é capaz de marcar no eixo da
identidade de género a distinção mente-corpo que poderia lançar luz sobre a
persistência da assimetria de género (gender asymetry) (Butler, Das Unbehagen
der Geschlechter, 1991, p. 31 [original: Gender Trouble: Feminism and the
Subversion of Identity, 1990][Problemas de Gênero – Feminismo e Subversão da
Identidade, 2003]). Ergo: De Beauvoir é criticada por não hipostasiar
totalmente o trilho cultural do género, como Butler considera que é decisivo!
Muito pelo contrário, no entanto, a análise de De Beauvoir, com a sua
insistência na tematização das hierarquias reais, é um pré-requisito para
elucidar a constituição fundamentalmente patriarcal do capitalismo. Isto não
pode ser revogado por uma mistura desconstrutivista superficial; mesmo
abstraindo de que a própria Butler sucumbe ao dualismo mente-corpo, quando
assume que o sexo já é sempre género e que para ela a cultura, de modo muito
classicamente patriarcal, triunfa sobre a natureza de maneira não dialéctica,
sendo a principal mandante. Apesar de De Beauvoir, perante o seu fundo
existencialista, tender na verdade em última análise para uma visão biologicamente
ontológica da relação hierárquica de género, o que deve ser criticado, no
entanto, uma vez que nessa assimetria para ela o género não está em harmonia
inquestionável, ela tem mais razão do que Butler com a sua análise culturalista
demasiado suave.
É verdade que Butler critica em De Beauvoir, tal como
eu, o entendimento existencialista-humanista do sujeito, mas com um contexto de
fundamentação completamente diferente e quase oposto. Para Butler, a totalidade
da sociedade, especialmente em Gender Trouble, é por assim dizer uma simples
totalidade da linguagem e do discurso. Falta uma compreensão abrangente da
totalidade, como dialética sujeito-objecto da forma fetichista de
relacionamento; na verdade, em Butler encontra-se praticamente uma simples inversão
do esquema base-superstrutura, uma vez que cultura, discurso e linguagem são
transformadas em certa medida na base da realidade material, como tem sido
constatado frequentemente com razão. Assim, a sua teoria é falsa e, em última
análise, “doida” numa ontologia do cultural, pós-modernamente saturada como de
costume, que não é capaz de abordar a relação social real na sua mediação
fetichista, enquanto socialização da dissociação e do valor. Identidade
(cultural) em geral ou identidade cultural sexual/género, no entanto, não é
para a crítica da dissociação e do valor o primeiro de todos os problemas. Esta
preocupa-se em primeiro lugar com a forma fundamental de dissociação e valor
como princípio social de base, que em si como tal constitui, ele sim, “formas
objectivas de existência” (Marx) e, portanto, constitui o pressuposto da
formação da identidade cultural. Sem a crítica e a análise deste pressuposto o
desconstrutivismo fica a pairar no ar, tal como existencialismo.
Porquê a reminiscência de De Beauvoir hoje?
Actualmente publicam-se colecções de ensaios com
títulos como Alles Gender? [Tudo é género?], Gender in Motion [Género em
Movimento], Was kommt nach der Genderforschung? [O que vem depois da pesquisa
sobre o género?] etc., mesmo que o resultado monótono acabe geralmente por ser:
depois da pesquisa sobre o género é antes da pesquisa sobre o género. Mas,
aparentemente, o “género” de algum modo vai nu. Em retrospectiva, parece-me ser
um mero ideologema da teoria do bem-estar social, adequado a uma fase em que as
mulheres tinham conquistado direitos de participação e nesta base adoptaram uma
atitude sobretudo fleumática, na pressuposição de que as coisas provavelmente
iriam continuar assim. Hoje é evidentemente imperdoável o desleixo com a dimensão
hierárquica de género que continua como antes. Depois de esta problemática já
ter sido considerada quase “no papo”, é agora claro que as estruturas de género
e identidades sexuais assentam obviamente mais fundo do que se tinha pensado,
ainda que tenha sido reservado às meninas alfa burguesas formular pela primeira
vez um “mal-estar” de tal modo afirmativo que compatível com o neoliberalismo.
Acresce que a situação de crise social geral, que
também aos indivíduos de classe média deixa pressentir cada vez mais a queda,
sugere um apelo aos níveis materiais que, numa perspectiva culturalista queer e
de género, não só está ausente, mas até foi há muito tempo descartado como
secundário por esse ponto de vista com arrogância culturalista. Os defensores
desta posição perdem agora a esperança, assim voltando a ser descoberto à
pressa o plano material, que já foi suposto dever ser maravilhosamente
recoberto com o pensamento desconstrutivista. Supõe-se aqui que diferentes
abordagens feministas no fundo querem todas supostamente a mesma coisa. O muito
alardeado respeito pela diferença, as diferenças entre as várias concepções são
assim eclecticamente aplanadas, no preciso momento em que não se podem esgotar
num pluralismo não vinculativo, justamente para enterrar as diferenças num
“anything goes” agora como antes pós-moderno. Diferentes concepções teóricas
devem ser compatibilizadas quase à força e postas sob uma capa de reconciliação
com corte de direita pós-moderno.
É precisamente neste contexto que volta a surgir de
repente Simone de Beauvoir como base para a discussão, ela que fora abandonada
durante décadas e até caluniada pelo feminismo da diferença e também pelo
feminismo da desconstrução: “Devido ao seu questionamento da categoria
supra-temporal e supra-regional ‘mulher’ (e ‘homem’), à sua rejeição de uma
base comum a todas as mulheres, Butler foi acusada de com este ponto de vista
impossibilitar a luta eficaz contra a opressão da mulher na sociedade. Aqui
novamente vale a pena olhar para Beauvoir. Ela prova de diferentes maneiras o
contrário: por um lado e de forma bem prática o seu livro estimulou a luta pela
igualdade de direitos entre homens e mulheres. Por outro lado, ao pôr
fundamentalmente em dúvida uma base “natural” do género, ela não nega de modo
nenhum que nesta sociedade haja hoje realmente homens e mulheres de forma
bastante real, nem que seja necessária uma longa luta ofensiva para acabar com
a discriminação das mulheres e com a violência contra as mulheres. É
necessária, portanto, uma coexistência destas duas perspectivas, se se quiser,
por um lado, tendo em conta as necessidades actuais das pessoas (e aqui
procedendo também eficazmente contra a actual discriminação e violência) e, por
outro lado, persistindo no objectivo de uma sociedade futura melhor, em que as
relações patriarcais e capitalistas de dominação serão abolidas” (Voß, 2011, p.
15).
Voß simplesmente deixa de fora que De Beauvoir tinha
avaliado o corpo biológico de modo expressamente ambivalente. Silvia Stoller
escreve: “No tempo de De Beauvoir havia graves desigualdades, pelo que era
importante uma exigência de igualdade – e ainda não podemos abandoná-la. Mas
hoje também é importante um pensamento da diferença. Em tempos em que o
pluralismo é um valor positivo, é preciso ter um conceito de diferença. O
problema é que se ignora indesculpavelmente a diferença (...) Há uma compulsão
para alinhar os outros – por exemplo, se alguém usa um lenço na cabeça, não
fala alemão ou coisa assim. Nessa medida ainda não pensamos a diferença de modo
suficientemente radical. E, finalmente, também não conseguimos renunciar à
ideia de construção. Butler ensinou-nos a olhar além do óbvio. Ela mostra-nos
também que o demasiado ‘natural’ não é natural e como fazer perguntas, por
exemplo: quem é agora realmente uma mulher?... Cada uma dessas análises e
exigências teóricas é relevante hoje em dia... Se se era uma teórica da
desconstrução, não se deveria (na década de noventa, RS) de modo nenhum trazer
a terreiro o conceito de diferença de Irigaray. ‘Diferença’ suscitava logo a
ideia de ‘bissexualidade’, ‘heterossexualidade’, ‘conservadorismo’ e assim por
diante. Nunca entendi essa avaliação negativa, pois a pluralidade que as
teóricas reclamam constrói-se sobre a diferença. Sem diferença não há
pluralidade” (Stoller, 2011).
Em vez de suplantar as várias perspectivas truncadas
existentes no feminismo e alcançar um novo ponto de vista actualizado,
proclama-se aqui eclecticamente a sua aceitação em igualdade de direitos
juntamente com uma visão conciliadora das imbricações, onde a diferença de
género surge de certo modo contingente, como uma diferença entre outras.
Se a situação de vida se torna precária e literalmente
“existencial”, é esse mesmo desenvolvimento de crise que traz consigo o facto
de ser de novo repetidamente declarado um fenomenologismo de calibre
universalista e às vezes até fútil. É neste contexto ideológico que também se
pode ver um novo retorno a De Beauvoir, e justamente no que respeita aos seus
fundamentos filosóficos problemáticos. “O homem no mundo,” a questão mais
absurda de todas, não por acaso voltou a ser actual; mesmo até voltada contra o
pós-estruturalismo, sendo que agora a problemática da alienação é associada a
novas estratificações para lá da sociedade de classes tradicional. Assim também
ganha força novamente um recurso a Heidegger no original, na senda do medo de
queda da classe média. E, mesmo quando Heidegger não é mencionado
explicitamente, no fundo trata-se dos seus questionamentos e da abordagem
correspondente. Também Carl Schmitt e o seu decisionismo já há tempo que estão
de volta na era pós-foucaultiana. Por outro lado, parece alastrar uma recepção
pós-moderna optimista de Heidegger no sentido de “Vive la diference”,
recorrendo por exemplo a Derrida, que ainda queria ultrapassar Heidegger com a
sua própria crítica da metafísica; recepção que parece ter sido ainda agradável
de ouvir na fase consumista do capitalismo pós-fordista de bolhas financeiras.
Em relação com isto também me parece que Sartre, bem
como De Beauvoir, voltam a surgir hoje com as suas ideias filosóficas
problemáticas numa viragem por assim dizer existencialista e fenomenológica de
esquerda. É o que acontece por exemplo no contexto “anti-alemão”, no que diz
respeito à análise do anti-semitismo, como se fosse possível responder a um
perigoso anti-semitismo como ideologia de crise embrulhada em medos abstractos
eles próprios transmitidos de modo anti-semita, no contexto dos questionamentos
da “filosofia decisionista” em geral. Na situação histórica concreta do período
entre guerras ainda havia a alternativa entre o nazismo e o “socialismo real”
constituído à maneira estalinista (que ele próprio apresentava traços
anti-semitas de maneira diferente). Mas não se pode por isso fazer uma analogia
decisionista partindo de uma existência abstracta como causa primária universal
que guarneça uma crítica fundamental do capitalismo ou lhe seja acrescentada
como componente principal. Mesmo se as possibilidades de escolha reais não são
sempre tão determinadas no concreto, elas movem-se já sempre dentro de um
contexto fetichista compulsivo que também condiciona essas decisões, ainda que
estas não fiquem reduzidas a ele e a responsabilidade por elas possa ser
imputada.
Hoje voltam a ser legitimadas atitudes voluntaristas,
tanto via situacionismo (ou neo-situacionismo, ou situacionismo vulgar – ver o
bestseller A Insurreição que Vem, perigosamente próximo do sorelismo), como
também da parte dos “anti-alemães”, que colocam em campo uma “decisão”
abstracta sem fundamentação e sem mediação (a favor ou contra o socialismo, na
verdade, a favor ou contra a razão capitalista iluminista). Não por acaso já há
congressos sobre a compatibilidade, mas também sobre a diferença entre Sartre e
Adorno, em que está claramente no programa uma vontade fundamental de
reconciliação, em vez de resolver de novo a diferença. Em vez disso, a
responsabilidade dos indivíduos pelo desenvolvimento social só poderá ser
determinada num contexto de reflexão crítica do fetichismo, que de modo nenhum
negue a dialética entre estrutura e acção neste sentido (ou seja, incluindo o
pressuposto cego das formas sociais).
Quase completamente despercebido, e sobre isso eu
infelizmente não posso entrar aqui em detalhes, é o “cigano”/a “cigana”, como
sub-humano/não-humano/homo sacer par excellence na constituição da modernidade.
Embora o anticiganismo como variante do racismo seja finalmente mais discutido,
não o é em todas as suas implicações. Sinti e Roma constituem na história da
modernização, como populações per se declaradas fora de lei, um pressuposto
necessário para as relações de dissociação-valor, marcando de forma extrema uma
dimensão de repulsão “existencial” e também sentindo isso na pele
“indiscriminadamente”. Esta base permanece em grande parte ignorada como tal,
especialmente quando é projectada como ideologia do medo na situação de queda
potencial das classes médias (ver Scholz 2007).
Neste contexto, acho que é uma ilusão e uma
racionalização ignorar ou dissolver no sujeito em “lógica existencial” a
questão da abolição da relação fetichista de dissociação-valor, que se
manifesta como questão sujeito-objecto (sempre também prática e imediata) não
em último lugar e justamente na perseguição dos “ciganos”. Em vez disso, deve
ser suportada a espargata entre sujeito e objecto num sentido entendido
historicamente, que inclui a imediatidade transmitida numa compreensão prática,
a fim de chegar a uma transcendência histórica concreta. Estruturalmente,
portanto, tem de se assumir necessariamente a socialização da DISSOCIAÇÃO-valor
como pressuposto, em primeiro lugar independentemente das mulheres (e homens)
empíricas/os, que de facto individualmente não ficam nela absorvidas/os, mas
não podem no entanto escapar a este contexto de constituição social. A síntese
social fetichista da modernidade em sua totalidade concreta constitui em geral
a razão mais profunda por que verdadeiramente surge o questionamento abstracto
“da” existência “do” homem no mundo; pois na verdade não existe um homem
abstracto a-histórico. O problema em si absurdo só pode ele próprio ser
explicado histórico-concretamente e logicamente a partir da dissociação-valor e
da sua história.
Daqui decorre também uma perspectiva da crítica que,
como eu gostaria de sublinhar novamente, se orienta para lá da igualdade, da
diferença e da desconstrução definidas à maneira capitalista, e portanto também
para lá de atitudes existencialistas ou semelhantes, para abrir caminho ao
radicalmente Outro. Trata-se de desconfiar tanto das ideologias e abstracções
de uma falsa ideia de transcendência como das de uma igualmente falsa definição
de imanência, as quais não conhecem os seus próprios pressupostos – por muito
simpáticos que possam parecer os pullovers pretos de gola alta e os Gauloises
sem filtro dos existencialistas franceses. Hoje, no entanto, seria aqui
simplesmente trocada uma vida de Gauloises por uma vida de erva heideggeriana.
Mas só há “existência” para nós realmente no interior das condições fetichistas
da dissociação-valor e não como um “ser lançado” ontológico, cujo conceito já é
sempre prefigurado primariamente como de classe média. O facto de ter de ser
sempre necessariamente mantido um conceito de “existência” a-histórico
constitui um mal-entendido da consciência dessas relações, que precisa de
alicerces aparentemente ontológicos.
Aqui deve ser sublinhado o contexto de
dissociação-valor como princípio social fundamental, justamente por não ser
empiricamente detectável de modo imediato. Isto também sob a impressão de que
hoje já quase não se conseguem encontrar considerações teóricas fundamentais
nem relativamente ao fetichismo social nem relativamente às relações de género
assimétricas. O facto de as mulheres não terem sido escravizadas dentro da
própria sociedade, como constata De Beauvoir, aponta para a relevância do corpo
(cf. De Beauvoir, 2008, p. 15 sg. [1967, p. 12]). Uma comparação superficial
com os judeus e os negros, como De Beauvoir faz, pode ser de facto adequada em
alguns aspectos, mas não atinge a dimensão profunda da socialização da
dissociação-valor. A nua “existência” como o ponto de fuga máximo não tem
sentido. Tais questões “interseccionais” (falando modicamente) apenas podem ser
esclarecidas em referência a esta dimensão fundamental e apenas neste contexto,
mesmo no seu significado próprio que nisso não fica absorvido.
Em tempos de hegemonia do discurso pós-moderno, no
entanto, parece que já não se consegue fazer a pergunta maldita sobre o corpo;
por outro lado, este é um pressuposto teórico tácito em muitas concepções sobre
o género. A partir deste dilema foram deduzidas reflexões apenas
não-essencialistas e não-biologistas para uma dialéctica sex-gender, as quais
no entanto não se reduzem simplesmente a uma dimensão culturalista de
race-class-gender e, portanto, também não têm nenhuma saída. A categoria
“género [Geschlecht]” distingue-se radicalmente de tais entendimentos e não
pode ser equiparada “desconstrutivamente” com outras formas de desigualdade. Só
este ponto de vista poderá tornar possível uma mediação da questão do género
com estas últimas como realmente “outras” em geral.
Se Lukács reclamou transmitir dialecticamente de certo
modo a “imediatidade imediata” e as leis estruturais objectivas fetichistas
negativas ou princípios objectivos de construção perante um pano de fundo
materialista marxiano, eu tentei fazer isso de uma forma modificada em relação
à avaliação histórica de De Beauvoir no contexto da minha teoria da
dissociação-valor. Para transcender realmente as estruturas com isto
relacionadas é necessário examinar o destino histórico concreto, em vez de
“atitudes” existencialistas que acabam num falso voluntarismo já não
interessado na objectividade negativa.
A conceptualidade da dissociação refere-se ao
pressuposto tácito da modernidade como o “Outro” (aqui fala Simone de Beauvoir)
da produção de mercadorias e do fetiche do capital, e como tal representa um
plano estrutural fundamental completamente diferente – em certo sentido situado
ainda mais fundo – que vai além do conceito de fetichismo marxiano. A dimensão
da dissociação-valor, assim, não apenas abrange uma relação de género
assimétrica, mas visa a sociedade como um todo. Transcendência no sentido da
crítica da dissociação e do valor é, portanto, algo diferente de uma crítica do
valor avaliada de modo universalista androcêntrico, mas também algo diferente
da de De Beauvoir. Nessa medida, o feminismo, no sentido da tematização da
dissociação-valor como princípio fundamental estruturalmente determinante,
simplesmente não pode mais permitir-se uma desajeitada confissão de
cumplicidade, que acaba por desembocar traiçoeiramente na perspectiva de género
objectivamente neutra. Da mesma forma, a tematização deste princípio
pressuposto (na medida em que sabe das suas mediações) é necessária exactamente
para dar a relevância aos “outros Outros” no sentido de totalidade concreta de
facto não menos valorizada em termos de hierarquia conceptual.
Neste sentido, contra todas as reedições ou variações
da filosofia existencialista abstracta ontológica, tenho de insistir, mesmo em
defesa individual em sentido “existencialista”, se se quiser, em que falo como
indivídua historicamente devinda (feminina) e como teórica num determinado
nível histórico de socialização, e nessa medida também numa determinada
“situação” de declínio da socialização fetichista e autonomizada da
dissociação-valor. Foi apenas este contexto condicional que me produziu, ainda
que eu não fique absorvida nele, caso contrário não poderia falar assim. Mas a
“transposição” destas condições exige antes de mais o reconhecimento desta
complexa dialéctica sujeito-objecto na dimensão histórica, que vá num sentido
humanista não só para lá de mim como indivídua, mas também para lá de uma
humanidade abstracta imaginada.
Esta dialética sujeito-objecto, que também constitui o
indivíduo (sexuado) em seu ser-assim tacanhamente individual, tem de ser
abordada de modo radicalmente crítico na sua limitação histórica. Especialmente
a este respeito, agora também se é como que jogado/a “individualmente” de volta
a uma posição existencialmente perdida, o que também não pode ser ignorado por
um entendimento crítico. Mas este entendimento não pode ser conseguido
ignorando a objectividade negativa e em curto-circuito ontológico-existencial.
Só nesta base contraditória, de uma vontade de transcendência que sabe das suas
próprias condições, podemos falar de uma verdadeira “possibilidade de decisão”,
se esta não deve ficar presa no imediato abstracto. Isso é especialmente válido
no que respeita a inscrever agora nas bandeiras a situação de crise objectiva
tornada também subjectivamente ameaçadora.
Fonte. SITE EXIT
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