A
ATUALIDADE DE CAIO PRADO JÚNIOR
Nos dias atuais, Caio Prado Júnior por certo se
levantaria contra as manobras e articulações que buscam levar adiante um
processo arbitrário das elites brasileiras para assumir o poder e aplicar uma
agenda ainda mais retrógrada, entreguista e privatizante, que será altamente
prejudicial às massas
por Luiz Bernardo Pericás
No começo da década de 1920, o escritor Leonid Leonov
publicou O fim de um homem mesquinho, narrativa com tintas dostoievskianas que
contava a história do professor Fedor Andreich Likharev, um paleontólogo que
passara a maior parte de sua existência ausente da vida política russa. Quando
estourou a revolução, ele se encontrava ocupado com seus estudos sobre a Era
Mesozoica e fazia o possível para não ser perturbado pelos eventos
transcendentes de sua época: estava mais envolvido com o passado remoto,
cavernas e répteis saurisquianos do que com seu próprio tempo. De certa forma,
ele mesmo era um dinossauro, que poderia ser extinto a qualquer momento: para
todos os efeitos, um homem supérfluo. Até que não conseguiu mais ignorar o que
estava a seu redor e acabou por se integrar ao movimento... Entre as distintas
abordagens ao texto, é possível perceber a ênfase no papel do intelectual na
luta do cotidiano. Ou seja, a importância do engajamento da intelligentsia no
mundo político e social e a crítica aos estudiosos de gabinete, distantes da
realidade à sua volta.
A novela leonoviana, assim, pode servir como defesa de
uma postura engajada, de homens de letras com forte intervenção no debate
público, como Caio Prado Júnior e vários colegas de sua geração. Afinal, o
autor de A revolução brasileira estudava com profundidade o processo histórico
nacional, com base no método dialético, como forma de entender o presente e
nele intervir. Não se limitava a análises conjunturais, mas via o país no
quadro maior da longa duração. Sua prioridade, portanto, sempre foi a luta pela
transformação social.
Caio Prado Júnior discutiu o desenvolvimento desigual e
combinado de um país que, desde seus primórdios, se inseriu na lógica do
mercado internacional e, depois, do imperialismo: nesse sentido, os desígnios
externos vinculados a elementos de poder político-econômico endógenos
permitiram a subsistência de uma dinâmica que se reproduziu historicamente (com
recorrentes mudanças, rupturas e expansões), mas deixando inalterados, em boa
medida, traços básicos das relações sociais (como a subordinação de setores subalternos,
pouco preparados cultural e ideologicamente, e muitas vezes sem organicidade
política ou condição efetiva de contrapor o modelo consolidado). Por isso, a
necessidade de atuar na fratura sócio-histórica e cultural brasileira, tentando
integrar as classes menos privilegiadas (com menor nível material e
educacional) ao painel ampliado da construção da “nação”.
Prado Jr. fez uma crítica contundente à concentração de
terras nas mãos de latifundiários e à “livre iniciativa privada”, defendendo,
ao mesmo tempo, o aprofundamento de reformas democratizantes e a rejeição a
todo tipo de autoritarismo. É verdade que seu mundo era outro. Ao longo da
vida, ele passou por episódios históricos importantes, como a Revolução de
1930, o Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, a ditadura
militar e o processo de luta pela redemocratização no país. Suas ideias,
portanto, devem ser vistas como produto de seu tempo. Ainda assim, podemos
tentar avaliar, de maneira panorâmica, elementos do contexto político e
econômico de hoje à luz do ideário caiopradiano, para tentarmos aferir uma
possível atualidade de seu pensamento.
Um primeiro aspecto é o da construção das ferramentas
necessárias para os câmbios sociais, que ocorreriam dentro de um processo de
mudanças permanente,ininterrupto e dinâmico,que poderia ser caracterizado, para
todos os efeitos, como “gradualista”. Prado Jr., nesse sentido, propõe
lineamentos, indicações gerais, apontando os principais problemas e a
necessidade de lidar com eles. As questões se apresentam constantemente durante
o processo; à medida que são resolvidas, novos questionamentos e problemas
surgem, com os quais as forças populares também deverão lidar. É ao longo desse
continuum que a “revolução” se processa.
Podemos nos perguntar que instrumentos, construídos e
liderados pelos próprios trabalhadores, seriam esses nos dias de hoje. É
possível sugerir que movimentos com certa autonomia, representatividade social
e organicidade, como o MST e o MTST (entre vários outros), talvez sejam aqueles
que simbolizem, em boa medida, o que defendia Prado Jr.: entidades ao mesmo
tempo com grandes contingentes de militantes sociais e também “escolas de
quadros”, que realizam a dupla tarefa de pressionar por reformas laborais
essenciais enquanto procuram consolidar uma “consciência” política dentro da
luta de classes de larga duração.
Os governos do PT (especialmente nos dois mandatos de
Lula), por certo, tiveram importantes êxitos no campo social e fizeram avançar
uma pauta progressista no país. Mas a agenda lulista nunca foi socialista
(nunca se propôs, de fato, a isso). Já Prado Jr. era um “comunista”. Ele se
recusava, como se sabe, a propor uma “revolução socialista total”; ainda assim,
defendia o arcabouço teórico marxiano, que não via o socialismo apenas como um
movimento pela abolição da desigualdade econômica, mas tendo como objetivo
precípuo a emancipação do homem, a libertação dos grilhões econômicos (mais do
que apenas a transformação de objetivos materiais como principal interesse da
vida) e a criação de uma sociedade em que cada pessoa pudesse participar de
forma ativa e responsável nas decisões do cotidiano.
O lulismo encarou a política como um movimento de
progresso e inclusão da classe trabalhadora, mas a ênfase foi colocada na
ascensão econômica e no consumo. O resultado foi que essa vertente se tornou o
veículo pelo qual as classes baixas puderam ganhar espaço social e conquistar
um lugar (mesmo que ainda coadjuvante) dentro da estrutura capitalista (e nunca
para superá-la). Iriam replicar os valores e os modismos das classes mais
abastadas e começariam a exigir mais das autoridades em termos essencialmente
materiais e individualistas. O sonho lulista vislumbrava a transformação de
fatias inteiras da população em “classe média”, com amplo acesso a bens
duráveis e serviços. Se na tradição marxista do século XX homens como Lenin,
Trotsky e Che defendiam a construção do “homem novo”, o lulismo acabaria por
criar o “consumidor novo”. E ainda de forma frágil. Aqui não se quer tirar o
mérito da árdua e importante tarefa de redistribuição de renda e inclusão
social de milhões de brasileiros, de forma alguma. Só se aponta para os
objetivos imediatistas e limitados do projeto, sem dúvida, importante, mas que
poderia (e deveria) ter ido bem mais longe. Há quem diga que o lulismo, na
prática, não se propunha a realizar reformas estruturais profundas (que
exigiriam rupturas e confrontos agudos com setores antagônicos), mas “ganhos
nas margens”, lentamente, apostando num ciclo estendido no tempo. Seria também,
na acepção do sociólogo Ruy Braga, um “modo de regulação” e “contenção” de
conflitos classistas, um “sócio menor” do bloco de poder capitalista no Brasil.
Para ele, o “sindicalismo lulista” se transformou não apenas em ativo
administrador do Estado burguês, mas em ator-chave na arbitragem do
investimento capitalista do país: de um “esboço desenvolvimentista”, acabaria
por transitar para o executor de políticas de austeridade fiscal...
Se o fortalecimento de um mercado interno era premissa
fundamental defendida por Prado Jr., ele deveria vir acompanhado de outros
fatores (o resultado do período recente, em última instância, foi o esgotamento
de um ciclo longo de expansão do consumo das famílias e do investimento
induzido pelo crescimento desse mesmo mercado interno). A aliança dos governos
petistas com segmentos conservadores, sua relação com os grandes bancos e
empreiteiras, assim como a aplicação de receituários econômicos elaborados por
representantes da elite financeira provavelmente seriam vistos de forma crítica
por Prado Jr., que assinalava que não se deve confiar na burguesia, que tem uma
agenda própria. Na primeira oportunidade, ela se volta contra seus apoiadores
circunstanciais e trai os supostos aliados, sem nenhum peso na consciência...
A análise das fundações de nossa sociedade era eixo
essencial na discussão caiopradiana. O autor de URSS, um novo mundo revelou as
relações, os processos e as estruturas sociais, econômicas e políticas que
operavam na composição e nas transformações de nossa sociedade, indicando o
fator de instabilidade,de falta de continuidade no decurso histórico do país,
ou seja, uma evolução por ciclos, com fases sucessivas de progresso, seguido de
decadência, resultando num sistema e num processo econômico em que a produção e
o crescimento se subordinavam a contingências extrínsecas. O desenvolvimento,
portanto, significaria a superação do passado colonial e a eliminação do que
ainda restava dele. Só assim o Brasil poderia deixar sua posição periférica,
complementar e dependente. Para isso, ele mostrou a dinâmica das forças sociais
internas e das pressões econômicas e políticas internacionais, por meio de
temas como o sentido da colonização, o quadro geral do escravismo, a crise do
sistema colonial e as forças que constituíram a República Velha, até os dias em
que escrevia. Premente, nesse sentido, seria a consolidação de uma “estrutura
política” democrática e popular,a modificação das relações trabalhistas
(especialmente no campo) e o rompimento com o imperialismo, o qual, segundo
ele, se integrara à economia do Brasil ao longo de vários lustros, graças a
mecanismos como financiamento de produção, comércio e exportação de produtos
distintos (especialmente o café); ao fortalecimento de setores vinculados a
bancos, agências creditícias ou elementos ligados à especulação financeira
operando por aqui; e à atuação de interesses estrangeiros em áreas como
indústrias, transportes, mineração e serviços públicos. O imperialismo, em
última instância, constituiria um fator que ao mesmo tempo integraria e
completaria o sistema colonial, apresentando-se, além do mais, como uma
“deformidade” no processo de modernização.
O painel atual do país é de desnacionalização,
financeirização da economia, juros altos, inflação acima da meta, falta de
democratização dos meios de comunicação, estrutura tributária perversa,
crescimento nas taxas de desemprego e criminalização dos movimentos sociais.
No campo, o agronegócio dá o tom, com extrativismo
predatório e cultivo de produtos para exportação com uso intensivo de
pesticidas. A agricultura brasileira se vê enredada pela aliança entre o
capital financeiro e as grandes corporações: o crédito e os insumos
monopolizados nas mãos de bancos e empresas multinacionais. Não é de estranhar,
portanto, que as cinquenta maiores companhias atuantes na agricultura do país
tenham auferido ganhos significativos em 2014 (em torno de 70% do PIB
agrícola). A maior parcela desse faturamento foi de empresas de capital
estrangeiro, enquanto muitas nacionais estão endividadas ou dependentes de
empréstimos externos. Concomitantemente, o corte de recursos orçamentários para
a reforma agrária (uma premissa básica defendida por Prado Jr.) e o ritmo lento
de assentamentos foram outras características deste momento. Dados do Atlas da
Terra no Brasil 2015,preparado pela USP/CNPq e coordenado por Ariovaldo
Umbelino de Oliveira, mostram que há 66 mil imóveis com 175,9 milhões de
hectares improdutivos no país. É bom recordar que os latifúndios pertencem a
somente 1% dos donos de terra no Brasil, mas equivalem a 43% das áreas de
cultivo agrícola ou criação de gado. As grilagens por empresas e proprietários
particulares continuam a ocorrer. Indicadores sobre a ocupação agrária mostram
que, em 2010, 238 milhões de hectares eram considerados “grande propriedade de
terra” no Brasil, enquanto em 2014 esse número cresceu para 244,7 milhões de
hectares, um incremento de 2,5% em apenas quatro anos. Isso significa aumento
de 6 milhões de hectares para as mãos de latifundiários. Para completar, a
violência permaneceu em ritmo preocupante: em 2015, foram 49 assassinatos de
posseiros, sem-terra e assentados em conflitos agrários. Em outras palavras,
penetração do capital estrangeiro no campo, aumento da concentração da
propriedade fundiária, permanência do latifúndio, repressão do Estado ou das
elites locais e produção essencialmente voltada para o mercado externo. Tudo o
que Caio Prado Júnior atacava...
O papel de subordinação e complementariedade em relação
à economia mundial é nítido. A reprimarização e desindustrialização marcam este
período. O eixo central da economia continua ligado àqueles setores
direcionados à exportação de produtos sem grande valor agregado. Em outras
palavras, o país mantém sua posição de fornecedor de commodities minerais e
agropecuárias para o mercado internacional, o que faz que alguns cheguem a
designar esse quadro de especialização produtivo-comercial de “regressão
colonial”.
O que se pode perceber claramente é que, se há
tentativas de ajustes ou intervenções conjunturais na economia, faltam uma
visão de longo prazo e um “projeto de nação”. Algo que Prado Jr. sempre
defendeu. Com o fim do superciclo das commodities (no qual se apostaram quase
todas as fichas) e a menor competitividade do setor industrial, a situação do
país parece sombria.
Finalmente, em relação à questão política, o autor de O
mundo do socialismo seria enérgico contra as tentativas de golpe da atualidade.
Prado Jr. e o PCB, nos anos de 1947 e 1948, passaram por um processo de
perseguição “institucional” que levou à cassação do partido e dos mandatos de
seus parlamentares. Foi uma forma de intervenção branca, por meio de leis,
dispositivos regimentais e aferições do Judiciário, para tirar de cena, com
toda aparência de legalidade, aquela agremiação política. E conseguiram. O
resultado, no caso do historiador, foi a perda de seu mandato de deputado
estadual e, em seguida, a prisão. Ele sabia muito bem como se orquestravam
conluios dos setores mais conservadores do país. E se empenhou energicamente em
campanhas públicas contra a ofensiva da direita. Foi duramente punido por isso.
Nos dias atuais, Prado Jr. por certo se levantaria
contra as manobras e articulações que buscam levar adiante um processo
arbitrário das elites brasileiras para assumir o poder e aplicar uma agenda
ainda mais retrógrada, entreguista e privatizante, que será altamente
prejudicial às massas (é só lembrar do programa “Uma ponte para o futuro”, do
PMDB). Um golpe institucional contra uma presidenta legitimamente eleita que,
apesar de quaisquer equívocos na condução do país, não cometeu nenhum crime de
responsabilidade. Um golpe encabeçado por figuras nefastas e levado a cabo por
um Congresso repleto de deputados processados ou réus na Justiça e que, longe
de ser “popular”, representa os interesses do capital financeiro, de
corporações, do agronegócio e de suas entidades patronais (como Fiesp, CNI, CNA
e Febraban), assim como das Igrejas e da grande mídia.
A consolidação da democracia sempre foi uma premissa
fundamental para o historiador paulista. O caminho a seguir, portanto, é pela
esquerda. Assim, “a crise em marcha” (numa expressão usada pelo próprio Prado
Jr.), paradoxalmente, poderá ajudar os setores progressistas a aglutinar
forças, não só para exigir a manutenção das conquistas sociais dos anos
recentes, mas também para pressionar pelo aprofundamento de uma pauta mais
radical e libertária, em termos políticos, econômicos e culturais, uma pauta
necessária para o maior desenvolvimento autônomo do país e a verdadeira
transformação da classe trabalhadora brasileira em protagonista de sua
história.
Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George
Washington University e professor de História Contemporânea da Universidade de
São Paulo. Tem livros e artigos publicados em diversos países, como Argentina,
Estados Unidos, Peru, Itália, Espanha e Cuba. Acaba de lançar Caio Prado
Júnior, uma biografia política, Boitempo, São Paulo, 2016
Ilustração: Aroeira
Fonte. Site Diplomatique/Brasil
Nenhum comentário
Postar um comentário