Novo livro de Branko Milanovic discute os riscos da
concentração da riqueza global
No mundo todo, dois grandes grupos viram suas rendas
crescerem nas últimas décadas: uma "nova classe média" global,
composta sobretudo por trabalhadores fabris na Ásia, e os super-ricos, os
grandes beneficiários da globalização financeiraFONTES: IMF WORLD ECONOMIC
OUTLOOK, WORLDBANK, UNWORLD POPULATION PROSPECTS (2016)_WWW.WORLDMAPPER.ORG
A República Romana já era enorme quando um de seus
escravos resolveu sacudir um pouco as coisas. E conseguiu. No ano 73 antes da
era comum, o gladiador Espártaco liderou uma revolta capaz de fazer frente às
bem organizadas legiões e pôs Roma a tremer. Não sem razão, afinal cerca de um
terço da população da região da Itália era composta por escravos, gente que
tinha bons motivos para querer mudar as coisas. O levante virou um símbolo
épico da luta contra a desigualdade, além de render um filme genial, dirigido
por Stanley Kubrick.
A resposta veio rápido. Marcus Licinius Crassus, um dos
mais importantes generais e políticos de sua época, tratou de mobilizar um
exército gigantesco que pudesse pôr fim à resistência escrava. Dois anos
depois, vitorioso, Crassus crucificaria 6 mil rebeldes, deixando claro que
novas revoltas não seriam toleradas.
Houve quem atribuísse o êxito fulminante do líder
militar a um talento individual fora do comum. No final do século XVIII, o
economista Adam Smith mencionava Crassus como um exemplo de autocontrole diante
dos sentimentos de medo e de fúria, uma habilidade essencial tanto na guerra
quanto na política. O sociólogo Max Weber, no entanto, viu no romano bem mais
do que características pessoais: sua fortuna era considerável, o que permitiu a
Crassus influenciar aquele que viria a ser o maior líder político de sua época,
o carismático Júlio César, obtendo em troca monopólios e privilégios. Para
garantir essas vantagens, Crassus não hesitou em comprar um exército.
Com o enriquecimento da República, que conquistava mais
e mais territórios, a desigualdade econômica em Roma aumentou. Recursos
privados foram usados para controlar a política. Crassus garantiu sua posição
de poder derrotando Espártaco – e para isso usou mercenários pagos de seu
próprio bolso para quase quadruplicar o tamanho das tropas que recebeu de Roma.
Não foi um simples gasto, claro, mas um investimento. Seu poder cresceu e, com
ele, sua riqueza. Marcus Licinius Crassus tornou-se o homem mais rico de sua
época, símbolo da plutocracia romana.
Estima-se que a riqueza de Crassus lhe rendesse 12
milhões de sestércios por ano, algo como 1 bilhão de dólares. Um romano médio
precisaria trabalhar 32 mil anos para juntar o equivalente à renda anual do
plutocrata. Trata-se de muito dinheiro para qualquer mortal que não tenha uma
família fazendo poupança desde a última glaciação. A quantia é comparável, no
entanto, à fortuna dos bilionários de hoje. Nos Estados Unidos há pelo menos
quatro pessoas mais ricas do que o romano havia sido, em sua época. Bill Gates,
cuja fortuna de 50 bilhões de dólares rende pelo menos 2,5 bilhões de dólares
anuais, dispõe de mais do que o dobro da renda anual do general Crassus.
A comparação é de Branko Milanovic, economista sérvio
especializado em desigualdade que desde o início dos anos 90 vive nos Estados
Unidos, e hoje dá aulas na Cuny, a Universidade da Cidade de Nova York. Mais do
que uma curiosidade, as comparações históricas de Milanovic servem para colocar
em perspectiva uma época – a nossa – de enormes disparidades econômicas,
provavelmente as maiores de toda a história conhecida. Saber as causas e as
consequências dessa desigualdade tão grande é essencial. Afinal, como foi
possível que surgissem novos Marcus Licinius Crassus, homens capazes, no
passado, de mobilizar exércitos e, hoje, de definir as preocupações da pesquisa
científica de ponta ou de ditar os rumos de uma nova corrida espacial?
É o que Milanovic tenta responder em seu livro mais
recente, Global Inequality: A New Approach for the Age of Globalization
[Desigualdade Global: Uma Nova Abordagem para a Era da Globalização], que acaba
de ser lançado, analisando os impactos do processo de globalização das últimas
três décadas – o aumento, desde os anos 80, dos fluxos do comércio e das
finanças, com a liberalização dos movimentos de capital de um país a outro. O
projeto do economista sérvio de certa forma dá continuidade à recente
reviravolta nos estudos sobre desigualdade provocada pelo trabalho do francês
Thomas Piketty – mas também vai além, preenchendo uma lacuna deixada pelo autor
d’O Capital no Século XXI.
Até Piketty, uma opinião comum entre economistas era a
de que não havia grandes motivos para se preocupar com a desigualdade, uma vez
que a economia de mercado, se deixada à vontade para funcionar, terminaria por
mitigar e reduzir as grandes diferenças entre ricos e pobres que a princípio
ela mesma teria produzido. Segundo essa narrativa convencional, ao se
modernizar, com a diminuição da importância da produção agrícola e aumento da
relevância do setor industrial, uma economia tenderia a gerar mais desigualdade
– as novas fábricas valorizariam o trabalho especializado, ainda escasso,
pagando mais aos profissionais que contratassem, em detrimento daqueles que
continuariam a trabalhar no setor “atrasado”. Mesmo os operários – além, claro,
dos donos da fábrica – ganhariam bem mais do que os agricultores. À medida que
a maior parte da mão de obra de um país fizesse a transição para o setor
industrial, contudo, essas grandes diferenças criadas inicialmente entre os
dois setores diminuiriam bastante.
O que o economista francês demonstrou é que isso até
podia ser verdade para alguns períodos e lugares específicos, mas que, de
maneira geral, as economias de mercado não tendem naturalmente à igualdade. Por
uma simples razão: os rendimentos – lucros, juros, dividendos – de quem já tem
riqueza, dinheiro acumulado, tendem, de forma geral, a serem maiores, a cada
ano, do que o crescimento da economia como um todo. A conclusão lógica de
Piketty foi a de que quem vive de renda termina por ganhar mais do que aqueles
que têm que vender seu trabalho em troca de salário – cujos aumentos não podem
ser permanentemente maiores do que o crescimento do produto total de um país.
Sem algum tipo de interferência governamental e redistribuição de recursos, o
mundo é uma máquina de criar desigualdade e, pior, uma desigualdade que tende a
aumentar.
Mas faltava uma coisa. Havia estudos capazes de mostrar
essa tendência em vários países, analisando as diferenças de renda e riqueza
dentro de cada um deles. Nenhum mostrava, no entanto, como todos esses países
juntos, isto é, o mundo todo considerado como uma única grande economia, se
comportava. Pela simples razão de que não havia dados agregados de desigualdade
para todo o globo. Entra em cena Branko Milanovic.
O sérvio ficou famoso, em 1999, ao ser o primeiro a
calcular com boa precisão a desigualdade global. Até então, tudo o que havia
eram medidas de desigualdade dentro de países e apenas algumas aproximações
globais. O que ele descobriu desde então é que o lugar mais desigual do mundo
é… o mundo. Nenhum país tem níveis de desigualdade tão altos quanto a de toda a
economia do planeta, considerada em conjunto. Em 2008 o coeficiente de Gini da
distribuição da renda do mundo era de 0,67, numa escala que vai de 0 a 1 e que
denota maior desigualdade quanto mais próxima de 1 – na hipotética situação em
que um único superbilionário detivesse toda a renda de um país, ou do mundo, e
todas as outras pessoas não recebessem dinheiro algum, o índice de Gini seria
1; pois o mundo está mais próximo disso do que da plena igualdade. Nem Brasil,
África do Sul ou Colômbia, sempre exemplos de altíssima desigualdade, chegam a
tanto.
Como se chegou a isso? Com a globalização, os destinos
dos países estão interligados. Se é que um dia foi possível analisar cada país
como uma ilha, definitivamente isso agora não faz mais sentido. Não só o
crescimento, como também a desigualdade de um país como o Brasil, por exemplo,
depende da desigualdade e do crescimento de regiões inteiras do planeta – por
exemplo, do crescimento chinês, que impulsionou a expansão da agricultura
brasileira na última década. O que cada pessoa ganha e o que cada grupo social
ganha ou perde, dentro de cada país, também depende daquilo que acontece na
economia global, para além das fronteiras de cada nação.
Até a Revolução Industrial, no final do século XVIII,
as economias cresciam lentamente e o mundo era um lugar razoavelmente
homogêneo. Não temos muita informação sobre isso, mas tudo indica que as
diferenças entre países ricos, de um lado, e pobres, de outro, cresceram muito
e continuamente entre 1820 e 1970. É um período conhecido como a grande
divergência, que separou o mundo em países desenvolvidos e subdesenvolvidos. O
pico da desigualdade entre países foi alcançado na década de 70, quando tudo indicava
que a geografia econômica do mundo estava mais ou menos estabilizada. Não
estava. A Ásia, que vinha crescendo desde pelo menos os anos 60, entrou em
acelerada expansão econômica nas décadas seguintes e começou a se aproximar dos
países ricos.
As mudanças nas últimas décadas na desigualdade entre
os países acabaram afetando a desigualdade dentro dos países. A Ásia absorveu,
nesse período, boa parte da produção industrial do mundo. A América do Norte e
a Europa ficaram com o controle dos sistemas financeiros. Países da América
Latina, que chegaram a ter mais de um terço de seu Produto Interno Bruto
advindo da indústria, regrediram e hoje são fornecedores de matérias-primas e
alimentos para o resto do planeta. Com isso, acabou se formando na Ásia uma classe
de trabalhadores de baixa renda que antes estavam na pobreza; na América do
Norte, na Europa e na Oceania, as classes médias industriais perderam posição,
mas emergiram os super-ricos, em particular os grandes executivos e homens de
finanças; enquanto isso, na América Latina, assistimos a uma transição do
trabalho industrial para serviços de baixa produtividade. A África, de modo
geral, continuou arcaica e pobre.
No fim das contas, foram as rendas de dois grupos
específicos que tiveram um crescimento verdadeiramente acelerado nos últimos
vinte anos. O primeiro grupo compreende pessoas de renda relativamente baixa,
não muito acima da pobreza, que vivem em países mais pobres. Essas são as
pessoas que estão no miolo, na metade da distribuição global da renda –
deixando para trás o grupo dos realmente pobres, mas por sua vez também sem
conseguir alcançar os estratos remediados e ricos das grandes economias. Seria
um exagero chamar essa fração do meio da distribuição de renda de “classe média
global”, Milanovic admite, mas se for mais fácil entender assim, a ideia é
esta: o miolo cresceu. O segundo grupo que aumentou sua renda e riqueza nas
últimas décadas é o dos ricos dos países ricos, o topo da pirâmide.
Comparativamente, ficaram praticamente estagnadas as classes médias, no sentido
convencional do termo, na Europa, América do Norte e América Latina, que estão
entre os 20% mais ricos da população mundial: seu crescimento não alcançou 1%
ao ano.
Os super-ricos – pertencentes ao 1% mais rico da
economia global – acumularam ainda mais riqueza devido, em parte, às condições
favoráveis criadas por um mundo liberalizado. A globalização estende aos ricos
a oportunidade de lucrar em mercados do mundo inteiro. Permite que pessoas na
Espanha especulem e lucrem com a dívida pública da Argentina. Ou que magnatas
russos transfiram sua riqueza para Londres, enriquecendo também, por tabela, o
setor financeiro inglês. A classe média tradicional dos países ricos, por sua
vez, perdeu lugar no bonde do emprego – com a transferência de fábricas e
indústrias menos sofisticadas para as nações mais pobres –, no qual subiu a
“nova classe média global”, em que se destacam os trabalhadores urbanos e
fabris da Ásia, principalmente da China.
Tudo somado, o crescimento do miolo da distribuição de
renda parece ter tido um impacto um pouco maior do que aquele dos muito ricos.
Tanto assim, nos diz Milanovic, que a partir do final dos anos 80 a desigualdade
global começou a cair, ainda que muito lentamente. A depender de como se faça o
cálculo, entre 1988 e 2011 o coeficiente de Gini do mundo cai de 0,72 para 0,67
– uma redução muito pequena, é verdade, de apenas 7% em 23 anos.
Será então a “nova classe média global” a verdadeira
vencedora da globalização? Depende muito de como se vê a mudança. O meio do
mundo cresceu, e muito. As pessoas na metade da distribuição de renda viram sua
renda duplicar entre 1988 e 2011. Entre os chineses, as rendas triplicaram.
Olhado por um ângulo otimista, foi um salto fenomenal em cerca de duas décadas.
Porém, na análise da desigualdade, muito mais
importante do que saber para onde o mundo foi é avaliar para onde ele poderia
ter ido. Taxas de crescimento da renda dos mais pobres tendem a traçar uma
versão excessivamente triunfalista das mudanças. Além disso, não são a melhor
forma de se tratar o assunto, pois, por maior que seja, o crescimento dos
pobres não afeta muito a desigualdade. Funciona como uma alavanca que tenta
deslocar um objeto: como muito pouco da renda do mundo está entre os pobres,
sua capacidade de mover a desigualdade é pequena. Os mais ricos, por outro
lado, têm um peso enorme e qualquer sacudida em sua renda faz a gangorra da
desigualdade balançar.
Mais sóbrio – e talvez mais pessimista – é olhar para
quanto cada grupo se apropriou do crescimento total. Aqui os números de
Milanovic impressionam: os 10% mais ricos da população global se apropriaram de
60% de todo o crescimento do mundo entre 1988 e 2008. Uma grande massa de
população melhorou de vida, é verdade, mas o que esse dado demonstra é que
poderia ter melhorado muito mais se o resultado do crescimento não terminasse
tão concentrado nas mãos dos ricos.
A conclusão que se tira disso não depende de piruetas
aritméticas: para tornar o mundo de fato menos desigual, o crescimento tem que
ser desconcentrado em escala global. Mas ainda falta bastante para chegar lá.
Depois que a última onda de globalização começou, em meados da década de 80, o
crescimento foi tão concentrado que, para alcançar o ganho do 1% mais rico,
seria necessário somar todo o aumento de renda de mais de dois terços da
população mais pobre do planeta.
Não é ainda o caso, portanto, de nos deixarmos
impressionar pela emergência de uma “nova classe média” global: mesmo com o
crescimento explosivo das últimas décadas, a renda necessária para que um
chinês esteja entre os 20% mais ricos do seu país ainda é menor do aquela
necessária para deixar de ser um dos 20% mais pobres dos Estados Unidos. Ou
seja, uma parte da “classe média alta” chinesa ainda é praticamente miserável,
segundo padrões americanos. A globalização teve vários vencedores. Mas alguns
foram muito mais vencedores que outros.
Os grandes vencedores formam uma pequena plutocracia
global. Segundo as estimativas de Milanovic, em 2010 o 1% mais rico do planeta
controlava 29% da renda e 46% de toda a riqueza mundial. Um milionésimo dessas
pessoas, 1 426 bilionários, para ser preciso, detinha 2% da riqueza global.
Pode não parecer muito, porém é mais do que o dobro de toda a riqueza da África
e algo que países inteiros da América Latina não conseguiriam alcançar mesmo
que poupassem um ano inteiro de sua produção econômica.
O que está em jogo é mais do que dinheiro. Em um mundo
globalizado, os estados nacionais perdem força. Um grupo pequeno de pessoas com
muita riqueza tem grande poder de colocar as cartas a seu favor. Em casos
extremos, a desigualdade é uma ameaça à democracia.
A democracia é um regime igualitarista – ou, pelo menos,
deveria ser. Sua ideia fundamental é a de que o poder político deve estar bem
distribuído. Cada pessoa tem um voto, e os políticos são apenas representantes
do povo. Fora do papel, claro, não é bem assim que funciona. Para começar,
campanhas políticas têm se tornado, no mundo todo, operações milionárias. Além
disso, depois que os votos são contados, entra em funcionamento uma máquina
complexa e cara, que vai do lobby à manutenção do aparelho partidário. E, como
se sabe, o dinheiro controla a mídia, e quem controla a mídia controla quais
informações chegam aos eleitores. Quando a riqueza é bem distribuída, cada
pessoa tem mais ou menos o mesmo poder de influenciar essa estrutura. Quando é
muito concentrada, a porta está aberta para a plutocracia. Adeus igualdade de
poder político.
Exemplos não são difíceis de encontrar. Silvio
Berlusconi, um dos homens mais ricos do mundo, foi quatro vezes
primeiro-ministro da Itália, em boa parte graças ao fato de praticamente
monopolizar os meios de comunicação do país. Donald Trump, ainda mais rico que
Berlusconi, é o grande financiador de sua própria campanha à Presidência dos
Estados Unidos. Mais rico ainda, Michael Bloomberg financiou não apenas seu
pleito à Prefeitura de Nova York, mas também as estruturas eleitorais de vários
políticos associados a ele. Dado o custo milionário das campanhas, não
surpreende que termine por ser assim: cada vez mais, e também no campo
político, manda quem tem dinheiro. A preocupação de Milanovic com os novos
plutocratas não é sem fundamentos.
Não são pequenos os entraves para que se possa reverter
o altíssimo grau de desigualdade do mundo hoje. A globalização permitiu a livre
migração do capital, mas não a movimentação das pessoas. Enquanto empresas e
investidores podem buscar melhores oportunidades de lucro fora das suas
fronteiras nacionais, o mesmo direito não é estendido aos trabalhadores, num
liberalismo de pé quebrado.
O Muro de Berlim caiu, mas no seu lugar foram erguidos
muitos outros. Na verdade, países que apregoam integração mundial e igualdade
de oportunidades como um valor fundamental estão erguendo barricadas para frear
a entrada de migrantes. A Hungria tem estendido cercas de arame farpado para
impedir a passagem de refugiados do Oriente Médio. Itália e Espanha patrulham
obsessivamente o Mediterrâneo para interceptar barcos clandestinos. Os Estados
Unidos muraram a sua fronteira com o México. Israel é um condomínio fechado,
circundado por palestinos pobres. Memória curta ou interesses mesquinhos, pois
todos esses lugares têm uma história importante de migração.
Outros mecanismos de política global para combater a
desigualdade parecem ser tão ou mais difíceis de estabelecer quanto a livre
circulação de pessoas – e o caso mais patente é o das sempre renovadas
propostas de tributar a movimentação financeira internacional.
Apesar de todos os entraves, não é fácil prever
mudanças globais, nem saber para onde vai a distribuição de renda no mundo. Se
previsões de comportamento da desigualdade dentro de países já erram com
frequência, o que dizer desse mesmo tipo de profecia em escala planetária? Não
é possível saber o que se passará com a China e a Índia em duas décadas. O
socialismo na União Soviética parecia inabalável em 1980. Quem garante que os
Estados Unidos não serão uma potência socialista em 2050? A história com
frequência dá saltos, sem avisar com antecedência.
Identificar tendências é importante, mas em seu livro
Milanovic é sóbrio e reconhece que tendências muitas vezes são insuficientes,
pois a história também é feita de eventos inesperados. Feitas as ressalvas de
praxe, contudo, ele admite especular sobre as prováveis consequências das
inclinações econômicas atuais.
Com a revolução das comunicações, áreas inteiras da
economia que antes pareciam protegidas das influências da globalização, como o
setor de serviços, devem ficar cada vez mais expostas às mudanças fora das
fronteiras nacionais. Sistemas inteiros de computadores na Inglaterra, por
exemplo, são mantidos por engenheiros indianos. Centrais que distribuem
corridas de táxi do Chile enfrentam competição de firmas localizadas nos
Estados Unidos. Não se trata apenas de deslocar serviços entre países, mas da
possibilidade de concentrar enormemente os ganhos com sua prestação.
Há certos tipos de serviços que podem ser organizados e
vendidos em grande escala e, por isso, são mais propensos à concentração. Não
há grandes obstáculos reais, por exemplo, para que assistentes jurídicos em
Angola realizem tarefas que hoje são feitas por advogados brasileiros, deixando
apenas a parte final da litigância no Brasil. Basta um responsável local para
que análises da economia, por exemplo, possam ser feitas em outros países, como
na prática já acontece com fundos de investimento. Assim como ocorre com
superatletas, a produção tende a se organizar na forma de uma competição
concentradora, na qual o vencedor leva quase tudo, criando superarquitetos,
superengenheiros, superadvogados etc.
A globalização, diz Milanovic, mudou e continuará
mudando o sentido que várias coisas têm hoje. Moedas nacionais já não são
independentes. Acordos e tribunais internacionais têm forte influência sobre os
sistemas jurídicos locais. Não adianta deslocar indústrias poluentes: as
mudanças ambientais e os custos de seu controle são um problema do mundo
inteiro. Há em curso uma guerra tributária entre países. Migram empresas,
ideias e, apesar de todas as barreiras, gente a uma velocidade sem precedentes.
É simplesmente impossível a desigualdade mundial não ser afetada por tudo isso.
No entanto, nossa forma fundamental de organização política ainda é nacional e,
talvez com exceção das organizações de comércio e de defesa, nossas
instituições internacionais têm um poder irrisório.
O mundo ficará mais ou menos desigual a depender de
como tudo isso evolua. Sobre um dos efeitos de todo esse rebuliço, porém,
Milanovic não hesita: os ganhos com a globalização não serão igualmente
distribuídos.
Ao comentar recentemente Global Inequality: A New
Approach for the Age of Globalization, o Prêmio Nobel de Economia Joseph
Stiglitz fez a pergunta central, de certa forma a grande questão que a obra do
seu colega sérvio levanta: Quem comandará os rumos do mundo, daqui por diante?
O 1% mais rico ou a nova classe média global?
Conhecemos a resposta para a República Romana – uma
resposta que, aliás, selou o seu destino. Com toda a sua riqueza, Marcus
Crassus comprou favores no Senado de Roma, entre eles a aprovação de leis que o
tornavam ainda mais rico. Ao influente Júlio Cesar, comandante do Exército na
Gália, o magnata concedeu empréstimos – dessa vez em troca de uma aliança
político-militar. Deu, com isso, o primeiro passo para a formação do pequeno
grupo político que, mais adiante, derrubaria o Senado e inauguraria o Império
Romano.
Na pergunta de Stigliz sobre quem comandará o mundo, a
balança da resposta pende para a elite global. Se dessa elite sairão os Marcus
Crassus de amanhã, ainda é cedo para dizer. Não restam dúvidas, contudo, de que
a desigualdade elevada cria as condições para isso.
MARCELO MEDEIROS
Marcelo Medeiros é sociólogo, pesquisador do Ipea e
professor da UnB
Fonte. Revista PIAUÍ
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