As reflexões produzidas
pelo feminismo – numa economia expressiva, já que se trata na realidade de
feminismos, no plural – colocam questões fundamentais para a análise da
opressão às mulheres nas sociedades contemporâneas. Mas não é só da posição
relativa das mulheres que trata a crítica feminista.
O conjunto cada vez mais
volumoso dos estudos feministas expõe os limites das democracias quando estas
convivem com a exploração e a marginalização de amplos contingentes da
população.
Analisam, assim,
mecanismos que operam para silenciar alguns grupos e suspender a validade das
suas experiências – eles operam de maneira específica sobre as mulheres, mas
não se reduzem a uma questão de gênero. Tratam das conexões entre o mundo da
política, o mundo do trabalho e a vida doméstica cotidiana. Na produção mais
recente, sobretudo, apresentam contribuições incontornáveis para o entendimento
de como diferentes formas de opressão e de dominação operam de forma cruzada e
sobreposta. Cada vez mais, falar da posição das mulheres é falar de como
gênero, classe, raça e sexualidade, para mencionar as variáveis mais
mobilizadas, situam conjuntamente os indivíduos e conformam suas alternativas.
Em sua diversidade, a
produção feminista questiona a subordinação e confronta, permanentemente,
discursos que se fundam na “natureza” para justificar a opressão.
A lista que apresentamos
traz um conjunto (entre muitos outros possíveis) de leituras feministas que
colaboram para entender o mundo contemporâneo e os desafios que enfrentamos
para a construção de uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais livre. A
ordem segue de maneira aproximada a data da publicação original das obras.
1. Alexandra Kollontai –
Selected writings (New York: Norton, 1977).
Um dos nomes de proa da
primeira geração bolchevique, Kollontai dedicou-se a entender a relação entre
classe e gênero. A fronteira de classe, para ela, era intransponível: parte de
seu trabalho consistia na crítica ao feminismo burguês, que buscava a igualdade
“sem desafiar prerrogativas e privilégios” e enchia a boca para falar de amor
livre, mas mostrava repulsa diante da “desordem sexual” das classes populares.
Em textos dirigidos ao grande público, como o impactante “Mulher trabalhadora e
mãe”, desafiava a ideia de uma luta comum, mostrando como as experiências das
mulheres eram sempre atravessadas pelo pertencimento de classe. Na
efervescência pós-revolucionária, advogou que o Estado soviético priorizasse
políticas de socialização do cuidado, poupando o “gasto improdutivo de energia
das mulheres na família”. Quase um século depois, quando o debate continua em
grande medida restrito a soluções de caráter privado (a divisão das
responsabilidades dentro da família), as contribuições de Kollontai permanecem
relevantes.
2. Simone de Beauvoir – O segundo sexo (Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2009).
O segundo sexo é
considerado texto fundador do debate feminista contemporâneo. Nos quase 70 anos
que nos separam de sua publicação original, em 1949, foi muitas vezes comentado
e criticado, serviu de base para reflexões renovadas e para a ação política de
muitas mulheres. Tem sido, recorrentemente, alvo de investidas conservadoras. O
enfrentamento direto com as justificações biológicas e psicanalíticas para a
posição de inferioridade das mulheres é feito em uma linguagem e por meio de
argumentos que ainda informam a defesa dos seus direitos. Beauvoir não faz
apenas uma análise de quais seriam as formas correntes de objetivação dessa
posição, em que a internalização da condição de “outro” pelas mulheres
desempenha um papel importante. Ela interpela as próprias mulheres a definir-se
como sujeitos livres, a colocar em questão o sentido do “feminino” e uma
posição que pode envolver garantias, mas lhes recusa a própria condição de sujeitos
de suas vidas.
3. Heleith Saffioti – A mulher na sociedade de
classes (São Paulo: Expressão Popular, 2013).
No Brasil, a posição de
obra inaugural do debate feminista contemporâneo pode ser atribuída a Heleieth
Saffioti. Publicado pela primeira vez em 1969, o livro foi a tese de
livre-docência da autora, defendida na Universidade de São Paulo dois anos
antes. O referencial marxista orienta a análise do livro, que mostra que parte
importante da reflexão feminista no Brasil se organizou no diálogo com a crítica
e a ação política de matriz socialista. Embora a própria autora não se visse
como feminista no momento em que produziu o estudo, o livro se posiciona dessa
perspectiva não apenas por dedicar-se a um dos problemas centrais para o
feminismo, que é a divisão sexual do trabalho, mas por colocar em questão a
naturalização do papel social convencional das mulheres. É desse prisma que
Saffioti analisa o lugar legado à mulher na sociedade, refletindo não apenas
sobre as formas e razões da desvalorização do trabalho feminino, mas também
sobre temáticas como maternidade, casamento e sexualidade.
4. Carole Pateman – O contrato sexual (Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1993).
As teorias
contratualistas, que representaram o primeiro esforço para justificar a
autoridade política sob uma perspectiva liberal, afirmam que a sociedade nasce
de um acordo entre todos os homens. Mas seu pressuposto oculto, busca mostrar a
inglesa Pateman, é a dominação prévia dos homens sobre as mulheres. Mais do que
uma releitura crítica, sob um ponto de vista feminino, dos teóricos clássicos
do contrato social, porém, o livro coroa o esforço de Pateman para interpelar o
instrumento do “contrato”, que o pensamento liberal apresenta como o mecanismo
padrão que permite legitimar relações sociais assimétricas. Se há “contrato”,
há concordância voluntária das partes, logo não haveria o que objetar. Mas
alguns tipos de contrato, como o de trabalho ou o de casamento, implicam a
subordinação de uma das partes. Movidos por necessidades que nascem de sua posição
social desprivilegiada, trabalhadores e mulheres se veem constrangidos a
alienar – contratualmente – sua autonomia. A obra gerou um enorme debate e
exerceu influência decisiva sobre toda a teoria política feminista posterior.
5. Bell
Hooks – Feminist theory: from margin to center (Cambridge , MA :
South End Press, 2000).
Não é possível, hoje,
falar em feminismo sem considerar as contribuições das feministas negras. Suas
elaborações teóricas, profundamente entrelaçadas à atuação política em
sociedades que não são apenas masculinas, mas orientadas pelos privilégios de
homens e mulheres brancas, desafiaram o universalismo de um modo que é hoje
incontornável. Feminist theory: from margin to center, publicado em 1984, pode
ser hoje considerado um ponto de origem no debate sobre o lugar relativo das
mulheres negras e a convergência entre gênero, raça e classe – ou, como parte
da literatura vem preferindo, a interseccionalidade. A força das elaborações
presentes neste livro está no enfrentamento aberto do fato de que as mulheres
também estão na posição de opressoras e que da opressão masculina não decorrem
laços ou uma solidariedade comum entre elas. Ao afirmar que o sexismo não
determina de forma absoluta o destino das mulheres e que é preciso compreender
como raça e classe atuam na construção das hierarquias, Hooks colaborou para a
construção de uma agenda que permanece como um desafio para o feminismo
contemporâneo. (Um capítulo do livro foi publicado em português, na Revista
Brasileira de Ciência Política, aqui).
6. Iris Marion Young –
Justice and the politics of difference (Princeton: Princeton University Press,
1990).
A cientista política
estadunidense Iris Marion Young, que faleceu precocemente em 2006, deixou uma
obra curta, mas de grande impacto. Justice and the politics of difference marca
o momento de maior radicalidade de seu pensamento. Ela observa como o apelo ao
“universal”, tão presente na tradição filosófica do Ocidente, trabalha
sistematicamente para naturalizar as posições dominantes (homem, branco,
proprietário etc.) e assim invisibilizar os dominados. Em vez da busca pela
reconstituição de um universal que nunca cumpre sua promessa de sê-lo, ela
prega uma política da diferença que reconheça o caráter socialmente situado de
todos os discursos. E, em vez de um padrão abstrato de justiça, ela propõe que
se entenda que a justiça é o enfrentamento aos padrões de opressão e dominação
presentes em cada circunstância histórica. (Um capítulo do livro foi publicado
em português, na Revista Brasileira de Ciência Política, aqui)
7. Christine Delphy –
L’enemi principal (Paris :
Syllepse, 2013).
O pensamento feminista
sempre recriminou o marxismo pela desatenção às questões de gênero, entendidas
como necessariamente secundárias em relação a classe – e produziu várias
tentativas de sínteses, em que os dois eixos de desigualdade fossem levados em conta. Uma das mais
instigantes é a da francesa Delphy. Segundo ela, o modo de produção capitalista
convive com um modo de produção “patriarcal”, marcado pela transferência de
trabalho das mulheres para os homens, na esfera doméstica. Ainda que deixe
muitas pontas em aberto (foi criticada sobretudo por ser incapaz de apreender
os mecanismos de subordinação feminina fora da família), a proposta de Delphy é
precisa ao apontar a incapacidade que o modelo marxista tem de incorporar o
trabalho doméstico e a exploração nele presente. (Um capítulo do livro foi
publicado em português, na Revista Brasileira de Ciência Política, aqui).
8. Carol Gilligan – Uma voz diferente (Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 1990).
Publicada em 1982, a obra inaugura as
reflexões sobre uma ética baseada no cuidado. Gilligan tem como ponto de
partida a teoria dos estágios morais do filósofo e psicólogo estadunidense
Lawrence Kohlberg, que é subvertida quando as vozes das mulheres são tomadas
como tal, e não tendo como referência um “universal” fundado na posição
masculina. Embora esclareça que a “voz diferenciada” das mulheres não emerge da
condição feminina, mas de experiências decorrentes de sua posição social, essa
abordagem acabou sendo reapropriada no pensamento “maternalista”, que associa
cuidado e feminilidade e vê na maternidade a base para uma ética diferenciada.
As críticas dirigidas a Gilligan apontam problemas metodológicos nas
entrevistas que embasam suas conclusões e, sobretudo, um deslizamento da
análise da posição de mulheres de classe média para o que seria a experiência
feminina em geral. A
contribuição de Gilligan permanece, no entanto, no esforço para tomar como base
as vozes situadas das próprias mulheres e, a partir delas, compreender suas
razões e escolhas. É algo que se revela particularmente interessante nas
entrevistas que tematizam a decisão de abortar, em que os julgamentos e a
linguagem das próprias mulheres constituem a problemática moral. (A edição
brasileira está esgotada há muito tempo, mas um capítulo do livro encontra-se
na coletânea Teoria política feminista: textos centrais, organizada por Luis
Felipe Miguel e Flávia Biroli. Vinhedo: Horizonte, 2013.)
9. Catherine A. MacKinnon – Hacia una teoría
feminista del Estado (Madrid: Cátedra, 1995).
Por seu tom fortemente
polêmico, a obra da jurista estadunidense MacKinnon é, com frequência, mal
interpretada e mesmo folclorizada. Mas ela apresenta contribuições de enorme
importância, mesmo que controversas, para compreender os mecanismos de
reprodução da dominação masculina. Vivemos em sociedades, diz ela, marcadas
pela erotização da dominação. A sexualidade – conceito que ela expande para
além da dimensão física, correspondendo à “dinâmica do sexo como hierarquia
social” – é, assim, uma expressão da dominação masculina. Isso a leva a
descartar a possibilidade de consentimento das mulheres nas relações
heterossexuais: numa sociedade assim organizada, não há possibilidade de
agência autônoma para elas. É necessário desfazer o trabalho de introjeção dos
valores dominantes, para que uma consciência feminina genuína possa emergir.
(Um resumo de parte do argumento do livro é feito por MacKinnon em seu texto
“Desejo e poder”, incluído na coletânea Teoria política feminista: textos
centrais, organizada por Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli. Vinhedo:
Horizonte, 2013.)
10. Susan M. Okin –
Justice, gender, and the family (New York: Basic Books, 1989).
As tensões entre o
universal e o específico atravessam o debate feminista. Vale lembrar que o
liberalismo não incide apenas na reflexão das feministas liberais, mas alimenta
historicamente as concepções da individualidade mobilizadas na luta pelos
direitos das mulheres. Mesmo entre aquelas que podem ser definidas como
liberais, como Okin, deslocamentos significativos se impõem quando a
perspectiva feminista é considerada. Justice, gender, and the family, de 1989,
é um exemplo importante de como isso se dá. Nele, a autora organiza sua crítica
às teorias da justiça que não colocam em questão as relações na esfera
doméstica – os comunitaristas estão entre seus alvos principais, mas seu
diálogo com John Rawls é um ponto alto na reflexão, justamente por expor os
deslocamentos antes mencionados. A vulnerabilidade das mulheres em sociedades
estruturadas pelas diferenças de gênero, central à análise de Okin, permite
discutir a oposição entre o público e o privado como um dispositivo de
reprodução da dominação e de limitação da autonomia das mulheres. (Um artigo
que resume parte do argumento do livro foi traduzido para o português e
publicado na Revista Estudos Feministas, aqui).
11. Nancy Fraser – Justice
interruptus (New York: Routledge, 1997).
Fraser, uma filósofa
estadunidense, parte da reflexão feminista para construir uma teoria normativa
abrangente da política. No texto mais conhecido de Justice interruptus, ela
propõe um modelo bidimensional de lutas por justiça, que inclua tanto a
redistribuição material quanto o reconhecimento das diferenças. Seu objetivo é
superar tanto o reducionismo que marcaria a reflexão marxista quanto o
idealismo das correntes que, focadas na mudança cultural, ignoram a economia
política. Outro capítulo que teve enorme impacto faz a crítica ao conceito
habermasiano de “esfera pública”, avançando a ideia de que os grupos em posição
subalterna precisam formar “contrapúblicos” para produzir suas demandas. O
livro inclui também textos importantes sobre a relação entre gênero, trabalho e
família, sobre o Estado de bem-estar e uma cuidadosa crítica de aspectos da
obra de Carole Pateman. (Dois capítulos do livro estão traduzidos para o
português. Um está na coletânea Democracia, hoje, organizada por Jessé Souza.
Brasília: Editora UnB, 2001; outro, na coletânea Teoria política feminista:
textos centrais, organizada por Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli. Vinhedo:
Horizonte, 2013.)
12. Patricia Hill Collins –
Black feminist thought (Boston: Hyman, 1990).
Collins destaca o
potencial das experiências e do pensamento das mulheres negras para a crítica a
uma matriz de dominação fundada simultaneamente na raça e no gênero. A
abordagem teórica que dela emerge enfoca as conexões entre experiência e
consciência, fiel a uma das principais contribuições das abordagens feministas
e do feminismo negro especificamente, que é a atenção à experiência vivida das
mulheres. Uma epistemologia feminista e antirracista depende, assim, da
compreensão dos contextos de produção do conhecimento. Todo conhecimento é
situado e o modo que a produção do conhecimento se dá tem efeitos direitos nas
vidas das pessoas e nas hierarquias sociais. A tensão entre a vivência concreta
dos indivíduos e sua marginalidade na produção do conhecimento é um tema
central na sua elaboração – daí a importância da noção de “conhecimento
subjugado”, com grande potencial para uma agenda feminista que continue a
apostar na articulação entre vivência, produção do conhecimento e luta política.
Fonte. Blog da BOITEMPO
Fonte. Blog da BOITEMPO
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