A reforma do ensino médio surge para anular as
ambiguidades do modelo brasileiro de contenção e formação da força de trabalho.
Por Leo e Silvia
Uma das imagens mais famosas de Banksy
é a silhueta preto e branca de uma menina cujo balão vermelho, em forma de
coração, é levado pelo vento, que sopra seus cabelos e seu vestido para frente.
O braço muito esticado busca, em vão, alcançar a linha que ainda está a poucos
centímetros da mão. Talvez essa seja uma imagem adequada à crítica das
indigestas reformas educacionais que ora são servidas — e sem cerimônia, pois a
ausência de mesura enoja a alguns tanto quanto o prato. Um direito social
fundamental, ampliado ao longo destas poucas décadas democráticas que hoje
parecem não ter passado de um interregno, estaria prestes a ser servido ao
mercado num grande banquete. A gestão das escolas por Organizações Sociais, por
exemplo, — não obstante a manutenção da gratuidade do ensino — abre as portas
para a exploração privada de uma “reserva de acumulação” ainda há pouco alheia
à lógica do lucro. Embora, na falta de algo melhor, o termo figure no slogan do
novo governo, nem mesmo os propositores da reforma afirmariam que a lufada que
nos arranca aquele delicado objeto tem origem nos ventos do Progresso. Sua
irresistibilidade vem de ares austeros, da prevenção contra gastos inúteis em
nome da eficiência. A crítica à privatização aponta, nesse sentido, para o
choque entre o princípio quantitativo da troca e as necessidades para as quais
o serviço público deveria se prestar — daí os braços esticados, buscando ainda
agarrar a “qualidade de ensino” perdida.
Contudo, são também em nome da “qualidade de ensino”
que se alardeiam as reformas. Publicidade? Depende da perspectiva que se adota,
e aquela que tem sido negligenciada embaralha o conflito tanto quanto a
periodização: afinal, a que se presta a educação?
Talvez apenas para os
paranoicos de plantão a sala de aula seja espaço de doutrinação para o comunismo ou coisa parecida. Só mesmo para uma direita delirante a educação
exerceria uma função de formação política propriamente dita. Do lado esquerdo,
essa hipótese foi digna de chacota até que a ameaça se tornou palpável. Então
lugares comuns como “humanismo”, “pluralidade de pensamento” e até “formação
para emancipação” retomaram a arena. Então é isso o que se está perdendo?
Quando ainda não se transformara em pânico, aquele riso
carregava seu conteúdo de verdade: no capitalismo, a educação, pública ou
privada, serve à preparação da força de trabalho, “qualificada” ou não. A
escola é um espaço central no processo de produção — e autoprodução — da única
mercadoria capaz de gerar valor. Se nos afastarmos das empresas concernidas na
privatização do ensino, que com ela pretendem receber sua parte do esbulho, e
encararmos o sentido geral da reforma, veremos que a novidade reside em outro
ponto, pois educação para todos é o direito de tornarmo-nos, todos, lenha.
Voltemos,
então, à questão da “qualidade”: não é por ser sui generis que a mercadoria
força de trabalho dispensa valor de uso: pelo contrário, a necessidade à qual
responde é a única inapelável. Da perspectiva do refino de combustível para a
queima capitalista, a atual proposta de reforma — tanto quanto vários projetos
afins, surgidos na década de 90, alguns hoje em pleno funcionamento — visa,
sim, a uma transformação qualitativa. A adequação do sistema público escolar,
ainda tão ridiculamente fordista, aos parâmetros de produção condizentes com a
acumulação flexível significa, em primeiro lugar, a criação de condições para o
engajamento subjetivo dos estudantes. Oferecer-lhes a possibilidade de escolher
os rumos que tomarão em termos curriculares, por exemplo, abre um espaço de
autonomia (delimitada apenas por metas): escolha os rumos que tomará, contanto
que escolha! Assim se treina humano para virar capital humano. O conteúdo tem
menos relevância que a responsabilização dos indivíduos por sua própria
autovalorização (daí a questão de haver ou não disponibilidade de determinadas
matérias ser um debate alheio às empresas interessadas na reforma — de fato,
uma reestruturação produtiva —, um detalhe ao qual o governo atual não
precisaria se aferrar senão para agradar a seu eleitorado negativo). Assim como
a responsabilização individual, a participação de toda a “comunidade” (seja lá
o que isso signifique) na gestão escolar amplia, em um mesmo movimento, a
exploração absoluta e a relativa, dado que os sujeitos mobilizados tendem, com
zelo inaudito, não só a estender sua jornada de trabalho (estão aí as escolas
em tempo integral para começo de conversa, fora o trabalho não pago em
elaboração de projetos, reuniões com parceiros privados etc.), como a
intensificar seu esforço para ultrapassar as metas e a desenvolver, de forma
participativa, tecnologias de ensino muito mais produtivas. Assim como na
empresa reestruturada, os níveis médios da burocracia poderão ser eliminados
graças ao trabalho gratuito realizado por aqueles concernidos na produção — no
nosso caso, professores e alunos, produtores da força de trabalho e força de
trabalho em processo de autoprodução, ambos prestes a se irmanarem no
empreendedorismo de si mesmos.
Por isso mesmo, dentro da sala de aula, a proposta é
uma pedagogia mais “dinâmica”, e sabemos exatamente o que isso significa: o
aluno, antes apassivado pela disciplina fordista — algo tão retrô que já ardia
nas chamas do Pink Floyd em 1979 — deve tornar-se ativo: aprender a tomar
decisões rápidas e adequar-se às mais diversas situações, solucionar problemas,
pensar “fora da caixa”, desenvolver suas capacidades comunicacionais e
relacionais etc. (E dessa perspectiva a reforma ainda faz muito pouco. É a
opinião do empresário Ricardo Semler, fundador de um centro de pesquisas em
educação que administra as inovadoras escolas Lumiar, cujo ilustrativo vídeo de
apresentação anexamos logo abaixo. “Reconhecendo-se o fracasso [do ensino
público], faz-se apenas uma redução de disciplinas. Pensando bem, elas nem
deveriam existir num mundo em que só interessa saber questionar – e procurar no
Google.”[1]). A alma pró-ativa, flexível, propositiva e disponível não pode ser
privilégio da casta de gestores do capital num mundo em que não é nada menos
que se exige em qualquer balcão de banco ou fast food.
Sem dúvida ainda se trata de produzir força de trabalho
barata, mas ultraqualificada para a resolução de qualquer urgência, o tempo
todo. E pronta para encarar de 15 a 20 empregos na vida [2], fora os freelas.
Mais do que a pilhagem de recursos de um arremedo de Bem-Estar Social que nunca
tivemos, é outra espoliação que faz brilharem os olhos dos grandes bancos
nacionais e de todo o panteão empresarial (de colossos “da casa” como InBev,
Natura e Odebrecht, a gigantes globais como a Samsung e a Telefônica)
encabeçado pelo Banco Mundial, que se empenha há décadas para reestruturar a
educação brasileira: o incremento da extração de mais-valor que pode
proporcionar uma força de trabalho ainda mais integralmente mobilizada. Se a
ampliação da carga horária vem acompanhada de uma diminuição dos conteúdos
obrigatórios é porque uma face daquela mobilização total é a disponibilidade
absoluta: nada está previsto, a não ser a meta a ser cumprida. Afinal, vivemos
em um mundo-mercado volátil onde só pode haver existência sobressaltada. Que a
“resiliência” — essa palavra tão em voga que se refere à familiar “elasticidade
que faz com que certos corpos deformados voltem à sua forma original” (embora
outro dicionário registre um significado muito mais up to date: “habilidade de
pessoas ou coisas para sentir-se melhor rapidamente depois de algo
desagradável, como choque, injúria etc.”) — seja para todos! Não que os
estudantes de escolas públicas já não a conheçam ou pratiquem, talvez mediante
algum bico esporádico em equilibrismo, tanto faz se no farol ou em comércio
ilícito, mas não custa ensinar viração com método: “gestão pedagógica para
resultados”.
A combinação da reforma com a PEC da redução
dos gastos públicos impõe um elemento novo a esse mesmo quadro geral: o
engajamento de pais, professores, funcionários e estudantes na corrida por
patrocínio privado será um mecanismo inigualável no treino para a concorrência
de vida ou morte. Na exaltação deste comprometimento febril com a luta pela
sobrevivência, resultado fundamental da austeridade para a qual nos
encaminhamos, agora em trajetória acelerada, é difícil não escutar uma nota
consonante com as propostas de feição mais democrático-palatável: nestas, assim
como na brutalidade mais explícita dos cortes, ressoa o mesmo canto da sereia
da participação. No realejo do gerenciamento eficiente de territórios e
populações, são antes de tudo dispositivos complementares de gestão pela
mobilização.
Eis a unidade que a separação entre um antes e depois
da “privatização” não nos permite entrever: no capitalismo “modernização” e
“precarização” são um único e mesmo processo. Por isso, opor-se, em nome da
qualidade do ensino ou da Educação Pública, à possibilidade de o estudante
trilhar seu próprio caminho curricular, tomar parte na gestão escolar ou ser
mais ativo em sala de aula, torna-se uma posição conservadora, posição essa que
se desmancharia no ar como por magia caso a mesma proposta viesse de outros
ventos, de feição mais “progressista”.
Tanto
faz. A questão é: os estudantes recusariam? Um caminho sedutor leva da ocupação
da escola à educação em tempo integral, das aulas livres e oficinas nas
ocupações ao currículo flexível e da autogestão temporária à participação. E
não se trata de desvio ou contrassenso, mas da estrada mais curta e melhor
pavimentada: tudo concorre para a rotinização daquele gesto de subversão de uma
rotina escolar em crise. Basta retirar a substância anticapitalista de um
desejo para transformá-lo em demanda. E o mesmo vale para as formas da luta:
esvaziadas de sua substância utópica (portanto efêmera) transformam-se em
formas de organização da produção capitalista.
Reside sobre esta fronteira entre possível e impossível
— e não há permanência estável nesse limiar ambíguo — o engenho que levou à
conquista da hegemonia pelo movimento em 2015, quando chegou a arrancar
críticas ao governo de São Paulo até de seus comparsas mais bem pagos. A
palavra de ordem “queremos estudar” conquista aderência por não fugir ao único
código de nosso pensamento único: produtividade. Assim também as ocupações só
alcançaram tanto apoio por terem driblado o ódio a tudo o que não possa ser traduzido
segundo essa lógica; afinal, os estudantes fizeram a escola funcionar:
reorganizaram o espaço e zelaram por ele (circulavam na internet fotos de
alunos limpando salas e banheiros, pintando muros, consertando coisas quebradas
etc.), cozinharam suas próprias refeições, mobilizaram pais e professores para
doações, reuniões e para a manutenção da infraestrutura, e chegaram mesmo a
elaborar uma grade de atividades com professores voluntários (entre os quais
não são poucos os adeptos do engajamento produtivo, ainda que a ele deem outros
nomes), dentre inúmeras outras “iniciativas”. Valer-se dos termos do campo
adversário foi crucial para a vitória secundarista — a adesão dos próprios
estudantes ao movimento e a velocidade de multiplicação das ocupações decerto
não seriam as mesmas sem ela —, mas esta perspicácia política cobra seu preço.
Se é possível ainda assim falar em um campo adversário é porque, ao mesmo
tempo, os estudantes foram aquilo que não se pode ser.
Trata-se de algo que o
encarceramento fordista do ensino deixa escapar: sujeitos meninos, formados no
entreato da produção escolar, seja no tempo livre do recreio, seja no devaneio
sonolento ou na zoeira durante a aula tediosa. É esse tempo improdutivo, que
nasce da resistência desorganizada dos estudantes ao ritmo do trabalho escolar
e é fértil às sementes da resistência organizada (não foi outro o tempo em que
se concebeu e preparou cada ocupação), o alvo principal das reformas do ensino.
E não apenas porque ele se recusa a ser preenchido produtivamente mas,
sobretudo, porque interessa profundamente ao capital incorporar e explorar a
experiência viva tecida entre a aula e a contemplação abobalhada do graveto que
risca o chão. Uma pedagogia mais “dinâmica” e “interessante” não pode
ignorá-la. Deve, ao contrário, transformá-la em trabalho criativo e colocá-la
em movimento numa direção específica e extremamente produtiva: a do
autoengajamento. As rodinhas de papo furado não levam a nada e, por isso mesmo,
se abrem a qualquer coisa, em especial a sonhar acordado; cabe, então,
deformá-las em grupos de trabalho, rodas de debate, equipes em competição. O
devaneio não passa de fantasia efêmera, a não ser quando assume perigosos
contornos coletivos; é preciso canalizá-lo para o terreno pragmático da
elaboração de projetos de vida. A zoeira, por vezes maldosa e agressiva,
desafia a autoridade do professor e o imperativo da produtividade; tem-se,
pois, de abrir espaços de diálogo e de expressão para que o aluno seja escutado
e desenvolva suas habilidades comunicacionais. E se os estudantes podem fugir
pulando o muro ou roubando as chaves do bedel, basta que as portas permaneçam
sempre abertas e que se transforme a fuga em estudo de campo, devidamente
controlado, divertido, seguro e muito mais eficiente. Ofertar escolhas
significa recusar a recusa e, de quebra, ocupar o estudante em torno da tarefa
de decidir entre uma diversidade de mercadorias coloridas. O mote “foco no
aluno” deve, nesse sentido, ser levado muito mais a sério do que o fazem os que
não se cansam de repetir que é pura mentira. Trata-se, de fato, de produzir uma
força de trabalho cada vez mais engajada na própria autoprodução, que não perde
tempo, corre atrás, e aproveita todas as oportunidades oferecidas — em suma, “ativa
e propositiva”. A reforma do ensino médio, mais do que o programa Escola sem
Partido, surge para anular as ambiguidades do modelo brasileiro de contenção e
formação da força de trabalho, para tapar as brechas através das quais nele
ainda se produzem sujeitos — entre os quais aqueles que foram às ruas em junho
de 2013 (vale lembrar da origem secundarista do MPL e das atividades de
formação e mobilização que realizou nas escolas ano após ano) e tomaram as
escolas no movimento secundarista de 2015 e 2016. Ao transformar todo o tempo
em tempo de produção, busca-se, num mesmo golpe, destruir os momentos de parada
e superar o hiato aberto pelo longo tempo de espera encaixotada rumo a uma vida
adulta de exploração. Eis o ponto: o futuro deve fazer-se presente. Daí a
imagem da menina que perde seu balão para o vento privatizante não ser tão
certeira para simbolizar a reforma do ensino. Há uma imagem de Banksy na qual
se vê a silhueta preto e branca de uma menina sentada, de pernas dobradas e com
a cara emburrada. Ela segura o seu balão vermelho que é a letra “o” da pichação
“no future”. Seu futuro não lhe foi roubado, ele está em suas mãos e, por isso
mesmo, já não poderá ser outro que não o que está dado.
Notas
[1] Ricardo Semler, “Truque sujo no Enem”, Folha de São
Paulo, 02 nov. 2016, p. A3.
[2] Como prevê documento da McKinsey & Company,
consultoria internacional especializada em educação, citado em artigo recente
do Passa Palavra, em cujas informações nos baseamos em diversos momentos.
As imagens que ilustram este artigo são da autoria de
Banksy e Louis Wain
FONTE. PASSAPALAVRA
Nenhum comentário
Postar um comentário