Indústria da doença, lucro vertiginoso
O setor privado financia a grande mídia, que aceita o
jogo imoral por ele praticado. Ao assistirmos aos principais telejornais,
observamos o ataque orquestrado ao sistema público de saúde, dando ênfase
apenas às falhas, tratadas como corriqueiras. Já os problemas do setor privado
não são exibidos
por Leandro Farias
Passados trinta anos de um marco na história do Brasil,
a 8ª Conferência Nacional de Saúde, ainda estamos diante de paradigmas que
contribuem para a visão mercantil do setor. Durante a Conferência, foi
discutido a fundo o modelo de saúde presente na época e, em relatório final
produzido por políticos, gestores, profissionais e usuários do sistema,
apontou-se a necessidade de mudanças neste. Tal relatório contribuiu para que,
durante a Constituinte, fosse debatido capítulo referente ao direito à saúde,
presente em nossa Constituição Federal de 1988. Assim nasceu o Sistema Único de
Saúde (SUS). Posteriormente, surgiram as leis n. 8.080 e n. 8.142, que tratam
da regulamentação, financiamento e participação social no SUS.
Persiste, porém, o desafio da quebra do modelo médico
hegemônico, hospitalocêntrico ou complexo médico-industrial, que traz uma visão
avessa ao modelo preventivista elaborado durante o processo histórico que
antecedeu a criação do SUS, a chamada Reforma Sanitária. O primeiro modelo
alimenta a visão mercantil da saúde e segue as leis do mercado, reforçando a
indústria da doença formada por laboratórios, empresas, planos de saúde, entre
outros. Essa indústria promove a prática de assédio aos profissionais da saúde
desde sua entrada nas universidades, com o custeio de viagens, cursos,
congressos e até porcentagem na venda de seus produtos. Sem falar na má
remuneração destinada aos seus profissionais, que assim optam pela quantidade em
detrimento da qualidade nos serviços disponibilizados.
Por deter recursos e poder, o setor privado financia a
grande mídia, que aceita o jogo imoral por ele praticado. Ao assistirmos aos
principais telejornais, observamos o ataque orquestrado ao sistema público de
saúde, dando ênfase apenas às falhas, tratadas como corriqueiras. Já os
problemas do setor privado não são exibidos. Não obstante, visualizamos figuras
públicas em propagandas que nitidamente visam ludibriar a população. Assim, o
imaginário de saúde como bem de consumo adentra a sociedade, sobrepondo-se à
ideia de saúde como um direito fundamental.
Atualmente, estamos diante de surtos de diversas
doenças como dengue, zika, chikungunya, influenza A (H1N1), microcefalia,
síndrome de Guillain-Barré. E temos observado a alta procura por vacinas e
medicamentos. Isso é reflexo de diversas políticas de governos que se sucederam
à formação do SUS, que por sua vez parecem encarar a saúde como “ausência de
doença”, o que na prática se torna um “prato cheio” para os que veem no setor
uma oportunidade de faturamento monetário. Tal visão política vai na contramão
do conceito ampliado de saúde, elaborado durante a 8ª Conferência, que traz uma
relação direta entre saúde e determinantes sociais, tais como condições de
alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte,
emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de
saúde.
Um retrato dessa realidade é a questão do saneamento
básico no país, traduzida em esgoto a céu aberto, lixo nas ruas e armazenamento
incorreto da água. Segundo levantamento feito em 2015 pelo Instituto Trata
Brasil, apenas 48% dos domicílios brasileiros têm coleta de esgoto. Segundo o
Ministério da Saúde (MS/Datasus), em 2013 foram notificadas mais de 340 mil
internações por infecções gastrointestinais no país. E o custo de uma
internação por essa patologia no SUS foi de cerca de R$ 355,71 por paciente na
média nacional. Estudos apontam a existência de uma ligação direta entre a
falta de saneamento básico e o aparecimento de doenças. O último Levantamento
Rápido de Índices para Aedes aegypti (LIRAa), divulgado pelo MS em novembro de
2015, nos trouxe a seguinte questão: no Nordeste, 76,5% dos focos do mosquito
estão em armazenamento de água para consumo – por exemplo, caixa-d’água. A
região concentra a maioria dos municípios com índices de risco de epidemia de
dengue.
Doenças como chikungunya, microcefalia e síndrome de
Guillain-Barré, que são provocadas pelo Aedes aegypti, demandam recursos e mão
de obra especializada, uma vez que os respectivos tratamentos são de médio e
longo prazo. Tais patologias, que culminam em maior demanda por serviços e
medicamentos, poderiam ser evitadas com ações de prevenção e promoção da saúde.
Falta foco nas condições socioambientais da população, sem falar que o sistema
público de saúde sofre de um subfinanciamento crônico. Para a Organização
Mundial da Saúde (OMS), cada R$ 1 investido em saneamento gera uma economia de
R$ 4 em saúde. Lembrando que saneamento básico é um direito presente em nossa
Carta Magna.
Ao analisarmos os números da economia, observamos que o
setor privado da saúde ignora a crise econômica que aflige o país, não se
deixando abater pela recessão. Ao contrário, o lucro do setor aumentou mesmo
diante da elevação das taxas de juros e da diminuição da renda dos
consumidores. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), o único setor que não sofreu queda nas vendas em 2015 foi o de artigos
farmacêuticos, médicos, ortopédicos, de perfumaria e cosméticos, que cresceu
3%. Os números da administradora de planos de saúde Qualicorp são claros: a
empresa obteve lucro de R$ 61,4 milhões só no último trimestre de 2015,
apresentando um avanço de 224% em relação ao mesmo período de 2014.
Sabemos que saúde se faz por meio de recursos. Porém,
uma sociedade acometida por diversas patologias promove um efeito expressivo na
economia, pois, além de exigir maior aplicação de recursos no orçamento da
saúde, uma vez que o acesso aos seus serviços é algo oneroso, uma quantidade
significativa de trabalhadores deixará de produzir por conta de sua doença. Ao
pensarmos que diversos agravos podem ser evitados, caso sejam respeitados os
direitos e as garantias fundamentais presentes em nossa Constituição, e que a
existência de relações promíscuas envolvendo membros do Executivo, Legislativo,
Judiciário e empresários impede o avanço de nossa sociedade por conta de
interesses minoritários, é válido fazermos a seguinte reflexão: quem lucra com
a crise no sistema de saúde?
Leandro
Farias
Farmacêutico
Sanitarista da Fiocruz e coordenador do Movimento Chega de Descaso.
Ilustração:
Aroeira
Fonte. Le
Monde/Brasil
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