Escola Sem Partido… dos Outros
POR MARCUS VINICIUS DE MATOS ESCOBAR
O projeto de lei “Escola
Sem Partido” é dessas iniciativas recheadas de boas intenções (como aquelas que
lotam o inferno). Seus propositores garantem que a finalidade é proteger alunos
de vários tipos de abuso, como intimidação ideológica, recrutamento partidário
em sala de aula, perseguição por causa de crenças políticas ou religiosas,
imposição de pontos de vista parciais em trabalhos escolares, aliciamento de
alunos para participação de assembleias, passeatas políticas e por ai vai.
A ideia é que a relação de
ensino-aprendizagem é assimétrica e por isso tem que ser vigiada. O professor é
o elemento forte da relação, o aluno o elemento fraco, de modo que o segundo,
devido a sua inexperiência, é vulnerável à lavagem cerebral e outros abusos
morais e intelectuais de professores inescrupulosos. Existe certa razoabilidade
nisso. O aluno pode mesmo ser vítima de exploração ideológica se seu professor
for antiético. Como deve ser (ou se é possível ser) vigiado esse tipo de abuso
é outra questão.
Mas há quem considere tudo
isso um exagero. Não por não haver essa assimetria, e sim por supostamente não
existir qualquer forma significativa de direcionamento ideológico nas escolas.
Assim, o projeto Escola Sem Partido (doravante ESP) não passaria de uma forma
de policiamento do pensamento e por isso seria ele mesmo ideológico. Isso está
parcialmente correto. O projeto ESP, apesar das boas intenções aparentes, se
parece mais com um pretexto encabeçado por conservadores para instaurar o
policiamento do pensamento nas escolas, o que contradiz suas próprias premissas.
Entretanto, tão ingênuo quem pensa existir uma intensa e deliberada doutrinação
ideológica nas escolas é quem pensa não existir doutrinação nenhuma (nem tanto
ao céu nem tanto a terra!). Se de um lado é insensato engolir a ideia de que
existe um programa nacional esquerdista de controle do pensamento atuando de
forma intencional e sistemática por trás do ensino, como pensam alguns
conservadores obtusos, de outro é difícil negar que exista um significativo
direcionamento político, talvez até partidário nas escolas por meio da
iniciativa espontânea de professores e pela circulação de materiais didáticos
ideologicamente enviesados que muitas vezes recebem o aval do Ministério da
Educação.
Entretanto, os
propositores do ESP parecem pressupor sem provas a existência do tipo mais
forte e sistemático de doutrinação, o que os iguala a conspiracionistas
paranoicos, e isso deveria bastar para que o país não os levasse a sério. Mas
não é só isso. O projeto se propõe ideologicamente neutro, todavia é no mínimo
suspeito que tenha sido orquestrado por um político evangélico e que tenha
ampla adesão da direita conservadora e da famigerada cambada bancada
evangélica. Na prática, o projeto é uma resposta falsamente neutra de
doutrinadores de direita a doutrinadores de esquerda, numa disputa desonesta
pela mente dos alunos.
Para começar, o texto do
projeto mantém expressões incorretas e tendenciosas como “opção sexual” (Art.
2º , VII), naturalmente para sugerir que sexualidade é mera questão de escolha
[1]. Também pressupõe a inseparabilidade entre moralidade e religião ― leia-se
cristianismo (item 15 da Justificava, p.7).
Além de isso ser um atentado à
laicidade, é pura dissimulação, já que Magno Malta (idealizador do projeto), na
condição de senador da república naturalmente sabe que não somente o estado,
mas também a moralidade fez-se há muito autônoma em relação à religião. Há
ainda no texto a justificativa sem sentido de que “os pais têm direito a que
seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas
próprias convicções” (item 13 da Justificava, p.6). Mas simplesmente não existe
esse direito, a não ser que se esteja falando em educação familiar ou em
escolas confessionais. Escolas públicas são laicas, e não estão submetidas às crenças
religiosas das famílias dos alunos. E novamente, seria muito improvável que um
senador da república não soubesse disso, de modo que a melhor explicação é que
Magno Malta e colaboradores estão manipulando conceitos e misturando palavras
no intento de introduzir sorrateiramente nas diretrizes e bases da educação
ideias indefensáveis embutidas em proposições vagas, e isso torna novamente
flagrante a tentativa desavergonhada de manipulação por trás dessa iniciativa,
o que é irônico já que o projeto se diz interessado em combater a manipulação
ideológica.
Imagine-se então uma
escola fiscalizada por políticos, pais e alunos conservadores, tendo como
referência diretrizes como essas. Uma disciplina como a biologia evolutiva pode
ser encarada como doutrinação ateísta. Uma lição básica de história pode ser
vista como doutrinação marxista. A proteção da diversidade sexual e de gênero
dentro da escola e o combate ao bullying homofóbico podem ser considerados
respectivamente como tentativa de doutrinação “gayzista” (sic) e “ideologia de
gênero” e assim por diante.
Em suma, o projeto ESP, se
fosse para combater “O Partido”, no sentido orwelliano, seria bem-vindo, embora
seja complicado determinar quais os critérios desse combate. Eu sugeriria que o
estado parasse de converter professores em burocratas mal pagos e que os
possibilitasse uma capacitação teórica mais ampla e profunda, o que deve bastar
para reduzir o ensino de parvoíces ideológicas aos alunos por docentes
intelectualmente provincianos. Mas para isso o MEC precisaria interferir menos
nos conteúdos ensinados, além de dar mais liberdade aos professores e espaço
amplo à ciência e ao debate aberto de ideias, coisas essas que, novamente, dependem de uma mais ampla e profunda capacitação
dos docentes (uma coisa retroage sobre a outra).
Infelizmente, o que se quer
com o projeto ESP não é nada disso, o propósito é possibilitar o
reflorescimento de ideologias conservadoras nas escolas, abrindo com isso
caminho para o ensino da religião cristã, do tradicionalismo e do
conservadorismo moral. O propósito é efetivar uma agenda política usando para
isso as cabeças inocentes dos alunos.
Autor: Marcus Vinicius de
Matos Escobar/ Psicólogo, guitarrista e cinéfilo.
Referências
http://www.senado.leg.br
https://www12.senado.leg.br
O termo adequado é
“orientação sexual”, como uma bússola que aponta espontaneamente numa direção.
O termo “opção sexual” dá a impressão de que o individuo tem escolha quanto ao
direcionamento de seu desejo sexual.
Post a Comment