David Graeber e a fase do capitalismo impotente
Sistema afastou-se da criatividade e invenção.
Avarento, conta tostões. Para enfrentá-lo, faltam movimentos também capazes de
ir além dos velhos programas
POR DAVID GRAEBER
David Graeber é um antropólogo e anarquista renomado.
Foi um dos criadores do Movimento Occupy em 2011. É o autor do livro Dívida: os
primeiros 5000 anos, muito aclamado pela crítica. Encontrei-o em Paris, no
lançamento do seu últimos livro “The Utopia of Rules: On Technology, Stupidity,
and the “Secret Joys of Bureaucracy” [“A utopia das regras: Sobre tecnologia,
estupidez e os brinquedos secretos da burocracia”].
Em 2011, você esteve entre os impulsionadores do
Movimento Occupy. Desde então, muitos movimentos sociais similares apareceram,
mas, aparentemente, nenhum teve folego suficiente para continuar vivo e atingir
seu objetivo. Por que fracassaram?
Não acho que estes movimentos sociais tenham falhado.
Tenho uma teoria sobre isso: “3,5 anos de atraso histórico”. Após o choque da
crise financeira, em 2008, as forças de segurança começaram, no mundo inteiro,
se armar para os inevitáveis protestos. No entanto, depois de dois ou três
anos, parecia que nada iria acontecer. De repente, em 2011, começou – embora
nenhum grande fato novo tenha se dado. Como em 1848 ou 1968, estes movimentos
não buscam tomar o poder: almejam mudar a forma como pensamos política. E neste
quesito, creio que tivemos uma mudança profunda. Muitos anseiam que o Occupy
tome o caminho da política formal. Verdade, não aconteceu, mas veja onde
estamos 3.5 anos depois: na maioria dos países onde ressurgiram movimentos
sociais e populares, partidos de esquerda estão mudando para abraçar as
sensibilidade desses movimentos (Grécia, Espanha, Estados Unidos e etc.).
Talvez demore mais 3,5 anos para que eles tenham um impacto real sobre os
projetos políticos, mas parece-me que é o caminho natural das coisas.
Vejam bem, vivemos numa sociedade de gratificação
instantânea: esperamos que ao clicar em algo, alguma coisa vai acontecer. Essa
não é a forma como os movimentos sociais trabalham. A mudança não aconteceu do
dia para noite. Levou uma geração para os abolicionistas ou os movimentos
feministas alcançarem seus objetivos, e ambos enfrentaram instituições que
existiam há séculos!
Mas os movimentos de base poderiam se tornar
organizações estruturais da política? O exemplo recente na Grécia não parece
muito encorajador.
Em primeiro lugar, não vejo como o Syriza poderia ter
ganho: eles estavam numa posição estratégica muito complicada. Se alguma
coalizão política do mesmo tipo se formasse na Inglaterra, num instante, a
história poderia ser completamente diferente. Neste exato momento, o mais
importante para os movimentos horizontais e anti-autoritários é aprender como
fazer alianças com aqueles dispostos a trabalhar com o atual sistema político
sem comprometer sua própria integridade. Isso é algo que subestimamos com o
Ocuppy. Acreditamos que nossos aliados do Partido Democratas e na esquerda
institucional tivessem uma compreensão mais clara sobre seu interesse
estratégico. Veja, precisamos ter nossos próprios radicais, para aparecermos
como uma alternativa razoável. Isso é algo que a direita e o Partido
Republicano compreendem bem. Se os democratas estivessem unidos na defesa da 1ª
emenda [que assegura liberdade de expressão, manifestação e crença] assim como
a direita está em relação a 2ª emenda [protege o direito do povo de portar
armas], o Ocuppy estaria provavelmente, vivo, e não estaríamos discutindo sobre
equilíbrios fiscais, mas sobre os problemas reais que afligem das pessoas.
Ainda assim, acredito que é necessária uma sinergia
positiva entre a esquerda radical e a institucional. Não precisamos,
necessariamente, gostar um do outro, mas devemos encontrar um caminho para nos
reforçar reciprocamente. A esquerda radical deveria estar mais preocupada em
ganhar, ao invés de brincar de superioridade moral.
Qual sua análise em relação aos últimos
desenvolvimentos da crise na Grécia? A ideologia da dívida parece estar em alta
na Europa
É sempre possível pegar o fenômeno mais repressivo e
transformá-lo em sinais de esperança. Neste caso em particular, a crise
europeia revela que a justificativa tradicional para a existência do
capitalismo não funciona mais. Claro que o capitalismo sempre gerou
desigualdades de forma maciça, mas havia três argumentos políticos cruciais que
contrabalanceiam esse fato. Em primeiro lugar o suposto efeito econômico
trickle-down [“escorrer para baixo”], a ideia de que se os ricos se tornarem
mais ricos, a camada mais pobre da sociedade melhorá naturalmente. O que não
acontece mais. Em segundo lugar: o capitalismo traz estabilidade. Novamente,
não é mais o caso. Em terceiro lugar: o capitalismo aceleraria o caminho para a
inovação tecnológica. Também não é mais o caso.
Então, o que sobrou para sustentar o capitalismo, agora
que todos os argumentos práticos se foram? Eles não têm mais escolha exceto
recorrer a argumentos puramente morais, à ideologia da dívida (“as pessoas que
não pagam sua dívida são más”), e à ideia de que se você não trabalhar ainda
mais intensamente, mesmo naquilo de que não gosta,, você é uma pessoa má.
David Graeber |
Em seu último livro, você sustenta que o capitalismo
não é capaz de gerar novos desenvolvimentos tecnológicos. No entanto, o que o
dogma contemporâneo tenta fazer crer é que vivemos numa época de grande
inovação. Quem está certo?
Me parece óbvio: entre 1750 e 1950, tivemos grandes
descobertas científicas, novas formas de energia foram descobertas, num caminho
rápido para inovação. Não me parece que aconteça novamente. O capitalismo
tornou-se uma espécie de força reacionária, freando o desenvolvimento tecnológico.
O que aconteceu com os carros voadores? A viagem ao espaço? Hoje, as
universidades, abarrotadas burocraticamente, são incapazes de reunir gente
comprometida com a verdadeira inovação. Os artigos do Einstein não passariam,
provavelmente, nas bancadas acadêmicas de hoje!
Pergunte às pessoas e você verá que, no final das
contas, a maioria não compra a retórica dessa suposta inovação contemporânea.
Não se trata mais de saber como a ideologia atua — porque o importante já não é
convencer as pessoas de que algo seja verdade, mas de que todo mundo acredita
que é verdade. Num certo sentido, o cinismo substitui a ideologia. Pense em
outro mito: a meritocracia. Todos nos sabemos que as pessoas não sobem na
escala hierárquica graças à meritocracia — mas devido à relação com o chefe, à
influência de um primo etc. Há um senso de cumplicidade: se você quer ser
promovido, não conte com seus méritos, mas com seu poder teatral de encenar
esses méritos. Seguir com as linhas oficiais. Isso é um subproduto da mentalidade
burocrática que descrevo no livro.
Você acha que é possível conciliar inovação tecnológica
e progresso social?
Já está acontecendo: Anonymous, Wikileaks ou, num certo
sentido, a impressão em três dimensões estão começando algo. O desenvolvimento
tecnológico sempre segue as tendências sociais. Alguém pensa que as pessoas em
Florença, durante o Renascimento, diziam “vamos criar o capitalismo: irá
envolver fábricas, trocas de mercadoria, e etc”? Claro que não. Não é algo
planejado. O mesmo é verdade para nós: uma vez que enxergarmos o queremos
alcançar, como sociedade, a inovação tecnológica virá em seguida.
Imagine se todas as pessoas sentadas na frente de suas
mesas, produzindo derivativos securitizados ou negociando algoritmos,
estivessem tentando criar um sistema de alocação de recursos que fizesse o
mesmo planejamento que os soviéticos tentaram, mas não tiveram capacidade. Eles
poderiam criar, provavelmente, algo interessante.
Para você, já não está claro se o atual sistema
econômico pode ser chamado de capitalismo. Por que?
A natureza da acumulação capitalista mudou
dramaticamente. Quando eu era estudante, meu professor de história econômica
dizia que quando a extração da mais-valia é feita diretamente através da
política, não é sinal de capitalismo, mas de feudalismo. É o que vivemos hoje:
uma fusão de burocracia pública e privada que propõem criar mais formas de
dívida, que será objeto de variadas formas de especulação. A única forma de
criar mais dívida é por meio da política: não existe isso que alguns chamam de
“desregulação financeira” — é apenas uma mudança no modo de regulação. Na
teoria marxista clássica, o papel do Estado é garantir as relações de
propriedade que permitem a extração de mais-valia ocorrer por meio do trabalho
assalariado. mas agora, o aparato de Estado desempenha um papel muito mais
ativo no processo.
Vivemos na era da burocracia predatória. Que
porcentagem da receita familiar é extraída diretamente pelo setor financeiro?
Estranhamente, estas são as estatísticas econômicas mais dificeis de conseguir,
mas quando os economistas fazem as estimativas, encontram algo em torno de 20%
a 40%. A maio parte do lucro já não vem do setor produtivo. No entanto, quando
pensamos na história do capitalismo, pensamos nas indústrias, no trabalho
pesado. Isso, claramente, não é o que temos hoje. Não há mais razão para
acreditar que o capitalismo estará vivo para sempre. Por séculos, o Império
Romano foi capaz de absorver as tribos bárbaras, de atraí-los para o sistema
romano, dando-lhes títulos de chefe e comandantes. Mas um dia, eles se
esqueceram de promover Alarico, que ficou muito irritado. Nós todos sabemos o
que aconteceu em seguida. O sistema é permanente até que não é; toda
contradição é absorvida até um ponto em que não é mais possível fazê-lo.
Qual é a sua opinião sobre a ideia de renda básica da
cidadania, paga de forma incondicional a todos os seres humanos?
Eu sou muito entusiasta dessa ideia. É uma medida
perfeitamente de esquerda e anti-burocrática. Hoje, ao contrário, cada vez mais,
as autoridades fazem os pobres sentirem-se piores, com aumento crescente de
monitoramento.
Na Inglaterra, é fascinante analisar as estratégias dos
diferentes partidos políticos. Os britânicos conseguiram abolir o aparato
industrial e agora estão tentando matar o sistema universitário. O que nos
sobrará para exportar? No momento, tudo é baseado no mercado financeiro e
imobiliário. Por que? Porque todos os ricos do mundo querem ter uma casa em
Londres? Há tantas belezas em outras cidades da Europa. Qual é o apelo? Eu
percebi duas coisas. Primeiro, você pode ter e acumular tudo que desejar na
Inglaterra, graças a uma classe trabalhadora dócil e subserviente. Tenho um
amigo cujo trabalho é entregar lagostas, em qualquer momento da noite. Segundo,
e mais importante: no Bahrein, Rússia ou Hong Kong, se algo der errado pode
haver um levante social. Não na Inglaterra, é perceptível: a derrota histórica
da classe trabalhadora inglesa tornou-se o maior produto de exportação da Grã
Bretanha.
E realmente, esta é a estratégia do Partido
Conservador: vender o sistema de classe para estrangeiros ricos. Contra isso,
qual foi a estratégia do Novo Trabalhismo? Focar na exportação da cultura
industrial. Mas nisso há um problema: a criatividade não vem só da classe
média, mas da classe trabalhadora também. O Partido Trabalhista destruiu o que
estava tentando criar ao impor limites ao bem-estar social. No século XX, a
Inglaterra criava, a cada década, movimentos musicais incríveis, que
repercutiam no mundo todo. Por que não acontece mais isso? Essas bandas viviam
no Estado de bem estar social! Tome um grupo de jovens da classe trabalhadora,
dê a eles dinheiro suficiente para curtir e brincar juntos, e você teŕa os
Beatles. Onde está o próximo John Lennon? Provavelmente, embalando caixas num
supermercado qualquer.
Entrevista a Arthur DeGrave | Tradução: Cauê Ameni |
Ilustração Michel Sloan
David Graeber
Anarquista, antropólogo e professor no Colégio
Goldsmith da Universidade de Londres . Anteriormente foi professor associado na
Universidade de Yale. Graeber participa ativamente em movimentos sociais e
políticos, protestanto contra o Fórum Econômico Mundial de 2002 e o movimento
Occupy Wall Street. Ele é membro do Industrial Workers of the World e faz parte
do comite da Organização Internacional para uma Sociedade Participativa (em
inglês: International Organization for a Participatory Society)
Fonte. SITE OUTRASPALAVRAS
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